segunda-feira, 14 de novembro de 2016

A MENSAGEM

Desliza um pingo de chuva
na folha do pessegueiro...
Na maré do olhar vazante
o horizonte mensageiro...
Descendo a encosta do monte
o cavalo e o cavaleiro.

Um arcanjo a toda a brida
ou um raio perdigueiro...
Rumor de brisa nas águas
o cavalo e o cavaleiro...
O vento em plena algazarra
liberto do cativeiro.

Escorrem pela planície
o cavalo e o cavaleiro
transpondo portal adentro
soergue o punhal guerreiro...
Serpentes relampejando
nos olhos do cavaleiro...

Desliza um pingo de sangue
na folha do pessegueiro...
Na maré do olhar vazante
o horizonte traiçoeiro...
E a noite devora o monte
o cavalo e o cavaleiro...

Afonso Estebanez 
CENTELHA


Nunca espero desta vida
o que a vida não me deu
minh'alma compadecida
é do amor que renasceu.

Corações a toda a brida
o meu nas beiras do teu
mas tu amavas dividida
sem saber qual era meu.

Montanhas a fé remove
e o amor é que comove
a centelha dessa chama

que me dói e não apaga
e me diz que não acaba
que o amor inda te ama.

Afonso Estebanez
(Poema dedicado à gentil
amiga Priscilla Basílio) 
CANTINHO DA SAUDADE

Ela soltou-se de um sonho
como quem acorda o beijo
no instante da eternidade.

A todo o instante suponho
ser um sonho meu ensejo 
de sonhar de ser verdade.

E ela se apegou ao sonho
e me fez sentir num beijo
impressões de eternidade.

Mas ela perdeu meu sono
e eu durmo com o desejo
num cantinho da saudade.


Afonso Estebanez
(Poema dedicado à amiga
Karolina Barbosa – “Karol”) 
UMA FLOR AINDA ME RESTA

Meu coração ainda não pulsou refeito
daquele amor ferido que me despojou
do sonho reluzido que restou desfeito
no jazigo do peito onde me confinou.


Do cântico do mar insone se fez leito
a noite de penar onde me deito e vou
no destino dos barcos a tirar proveito
a despeito dos dias que a maré levou.


Só eu posso tirar o véu da eternidade
a alma exaurir com infinita liberdade
e só viver o bem que por amor eu fiz.


Fez-me a vida partícula do universo,
ou pólen da palavra na raiz do verso
o oráculo que faz a flor nascer feliz.

Afonso Estebanez
AMOR (DE) LÍRIO

Um suspiro solitário
à luz extinta do círio
ou gemido libertário
calado na flor do lírio.

É amor ou é martírio
padecer involuntário
ou é sonho de delírio
é o gozo do calvário.

É o céu e é o inferno
É o lado mais eterno
da loucura na razão...

É o cativo ou o liberto
o lado duplo do afeto
no abismo do coração...

Afonso Estebanez 
A ROSA E O TEMPO

Esta é a mão da minha alma,
mão que planta e colhe flor!
É minh’alma é minha palma
é concha em forma de amor.

Esta é a rosa que traz calma
malgrado o espinho da dor!
É flor que atine sem trauma 
para a cruz de um desamor.

Esta é a flor do pensamento
onde o amor chega discreto
como um raio de esperança.

Rosa é um jardim do tempo
em que o meu amor secreto
jaz-me eterno na lembrança.

Afonso Estebanez
A FOTO NA PAREDE

Meu retrato na parede
só traz uma novidade:
o fundo tinto de verde
ficou tinto de saudade.

O olhar pálido de sede
no poço da eternidade
é a luz filtrada na rede
da grade da liberdade.

Uma ruga me comove
de ter restado na vida
do nada que me ficou.

E só o sonho se move
na retina amanhecida
desta foto que restou. 

Afonso Estebanez
(Dedicado com muito carinho 
à amiga Lucia Borini Simões) 
DOER DE AMOR

Esse amor dói tanto
que me faz de fome
devorar meu pranto
que o doer consome.

Mas viver o encanto
de eu sonhar insone
me faz ver o quanto
é o doer sem nome.

O doer dos carinhos
prazer dos espinhos
das rosas sem dor...

O doer que convém
o doer que faz bem
ao doer-se de amor.


Afonso Estebanez 
(Dedicado a Giseli Estebanez) 
DOCEMENTE AMARGO

Teu amor é como a pluma
de uma luz na madrugada
não ama aurora nenhuma
que não a luz da alvorada...

Meu amor foi uma escuna
sem partida nem chegada
na noite escura da bruma
de uma dor não dissipada...

Teu amor é como os rios
conduzindo meus navios
que se perderam do mar...

E o amor doeu-me tanto
como dói só por encanto
pelo encanto de te amar...

Afonso Estebanez
CANÇÃO BALDIA

Às vezes tenho saudade
da saudade que não tive
de morar com liberdade
onde livre nunca estive.

Às vezes tanta saudade
não é tanta por um triz:
pois que a tal felicidade
só me quis quase feliz.

Fui quase feliz em tudo
fui e sou sem vanidade
do que serei sobretudo
a despeito da saudade.

Partir foi quase preciso
sumindo na eternidade
não me fora teu sorriso
enganar essa saudade...

Afonso Estebanez
(Poema dedicado à notável poetisa
carioca Soninha Porto – 08/02/09
SONETO DA PROMESSA


Eu te prometo consagrar a vida
nos rituais profanos da paixão
deixando minha parte proibida
ao jugo dos amores sem razão...

Tu me juras a devoção rendida
aos caprichos pueris do coração
cuja senha secreta está perdida
nos êxtases obscuros da ilusão.

Eu juro exorcizar-me do absurdo
e dessa insensatez do sobretudo
amor demais e só na alma vasta.

Meu tributo é a alma aqui jurada
e não precisas prometer-me nada
se teu amor é tudo que me basta...

Afonso Estebanez 
SONETO DA INFIDELIDADE


Em nada ao meu amor serei atento,
antes, só por descaso e desencanto
que mesmo seja meu o teu encanto
dele me desencante o pensamento.

Não viverei por ele um só momento
e de tristeza hei de calar meu canto 
e cantar de alegria com meu pranto
o seu prazer ou descontentamento.

Tomara esse feliz de quem não ama
talvez a vida, sonho de quem morre
assim mais cedo um dia me procure

e dele eu fale que sequer foi chama
e não sendo infinito a quem socorre
não me seja infinito ainda que dure.

Afonso Estebanez
(Réplica ao ‘Soneto da Fidelidade’
De Vinicius de Moraes)
SONETO DA IMPERFEIÇÃO

É possível que esse mar
de tanto bater na encosta
pare no âmago da forma
d’alma perfeita da rocha

E é possível que o vento
degrane tanto o rochedo
que esbarre no substrato
do ser de pedra perfeito.

E tanto comigo mesmo 
vou lutar estando preso
libertar meu ser preciso.

O que for remanescente 
(o que dói e se ressente) 
nem sempre é definitivo.

Afonso Estebanez 
SONETO DA ESPERANÇA

Há coisas que não cabem neste mundo.
No mundo há coisas que não pode haver.
Descabe o enigma de meu ser profundo
nas coisas que me invadem sem caber...

Há lágrimas de amor em que me inundo.
Há mágoas que me inundam sem poder.
Cabe em minh’alma grito tão mais fundo
que o pranto de quem chora sem querer...

Não conheço ninguém que tenha amado
sem martírio ou quem sabe transportado
toda a paixão do mundo numa cruz...

Mas se couber no mundo uma criança
pode o mundo caber numa esperança
como o final do túnel numa luz!

Afonso Estebanez
SONETO DA GRATIDÃO


Apesar de minh’alma naufragada
nesse cálice amargo de orfandade
compraza a Deus a via iluminada 
que te guia da sombra à claridade...

Malgrado a desventura consolada
por velados suspiros de saudade,
apraz aos céus saber-te retornada
para ensinar o amor na eternidade...

E entre flores e lágrimas e afetos
está o adeus dos filhos prediletos
que o acaso da vida pôs dispersos...

E me coube, a despeito desse pranto,
a glória de render-te com meu canto
a gratidão que trago nestes versos...

Afonso Estebanez 
SONETO DA ESPERA


O coração tem que esperar, mais nada!
Inda que a espera exaure a vida inteira
até que emprenhe o banho de alvorada
a luz das águas remansosas da ribeira...

O amor tem que esperar essa chegada!
Inda que chegue ao nunca do amanhã,
até que soem os clarins da madrugada
no ouvido íntimo dos sinos da manhã...

Sonhos são deuses surdos, nada mais!
E para deuses não existem horizontes
em que o amor desponte eternamente...

Sonhos de amor são brisas sazonais... 
Às vezes partem por alguns instantes
e às vezes vão embora para sempre...

Afonso Estebanez
SONETO DA CIRCUNSTÂNCIA

Algo que escutas entre o mar e o vento
algo que perdes entre a onda e a areia
um vago instante de algum pensamento
à luz que há entre a chama e a candeia.

Algo entre o aroma, a brisa e o relento 
fios que urdidos entre a aranha e a teia
vibram em mim de um átimo do tempo
a chama desse amor que me incendeia.

Em minh’alma inda incólume à deriva
nem sei o que fazer do que ainda resta
de meus barcos de bruma sobre o mar...

Faças de mim a tua circunstância viva 
e desses restos me celebras uma festa
e o que ainda resta é para eu te sonhar...

Afonso Estebanez
(Dedicado à amiga Elaine Bastos Matos) 
SONETO DA CANÇÃO REPOUSADA

Eu devo acontecer como acontece a noite
em teu corpo de rosas repousado em mim.
Os ventos passarão calados sem pernoite
e a noite transformada em relva no jardim.

A voz da chuva não será nem leve açoite
pois velarei teu sonho como um querubim.
Então te lembrarás de mim: o tempo foi-te
passando e de saudade fui ficando assim...

De olhos abertos para a noite remansosa
entre os vestidos da lembrança vagarosa
que ainda repousa no silêncio da canção... 

Eu devo acontecer como acontece a flor
renascida das cinzas da canção de amor
que guardo nas ribaltas do meu coração...

Afonso Estebanez
SONETO À SOMBRA DE NIETZSCHE



Hoje não quero nada de ninguém!
Nem compaixão, nem flores, nada enfim...
Tudo se esquece ou é ilusão. Porém,
eu sei que Deus vai-se lembrar de mim.

Passa o amor e fica esse desdém
nas sombras fugidias do meu fim...
Ah, pássaros que emigram para além
do amor que é gêmeo, mas não é afim...

Não quero nada. Nada! Nem lembrança
nem presente ou promessa ou esperança
nem vago instante que pareça festa...

Quero apenas que Deus me dê a graça
de brindar em silêncio numa taça
a glória de viver do que me resta!

Afonso Estebanez
SONETO À MODA DO ABERDEEN



Nem do vão tombadilho o manso pegureiro
Nem o expungir do sangue escravo da memória
Nem o calar dos ferros no convés negreiro
Nem o silêncio tetro nos porões da História...

Nem mesmo ao fogo-morto o buzo do terreiro
Nem a oblação de Roma em toda a sua glória
Nem Prometeu remido ao brado condoreiro
Nem a paixão do Gólgota de amor à escória...

Nem as vozes d’América pelo infinito
Nem o condor do céu mandando um novo grito
Nem a dor de Ahasverus fausta de perdão...

Nem que algum dia o próprio Deus ouça e responda...
Não haverá embuço que a vergonha esconda
Depois de cinco séculos de escravidão...

Afonso Estebanez
EXALTAÇÃO

Meu ser entrego ao derradeiro alento
no desenlace de minha alma ungida
pela esperança de num vão momento
galgar a morte na ilusão da vida.

Mas tudo o que me resta é a fé contida
num rasgo de prazer do sofrimento
de rebuscar na treva a luz perdida
no inferno elemental desse tormento.

E em já meu ser demente e sibilino
qual num culto de amor semidivino
minh’alma chora, hesita, mas persiste...

E flui por entre estrelas e alvoradas
num turbilhão de luzes deflagradas
ante a certeza de que Deus existe!

Afonso Estebanez
(Premiado em 1990 no “Concurso Nacional de Sonetos” 
promovido pela Casa do Poeta “Lampião de Gás” – SP.
Comemoração ao centenário da morte de Guilherme de 
Almeida)
O AMOR DA INSÔNIA

Mais uma noite vou dormir com minha insônia
que este é o meu modo de viver num paraíso,
pois que sonhar dormindo é a inútil cerimônia
que me priva de amanhecer com teu sorriso...

Sonhar com pesadelos é perder-te o instante
de andar pelo jardim que no teu corpo existe,
mais doce quando sonhas é o teu semblante
de quem jamais desperta com o sorriso triste.

Então vou acordar como quem nunca dorme,
aguardar que teu beijo então me faça a hora
esperando que o encanto de te amar retorne
e cante como pássaro que acorda a aurora...

Afonso Estebanez
(Poema dedicado à doce 
amiga Ana Maria Wagner)
CHUVA NO MOLHADO

Gosto da chuva no telhado...
As goteiras me fazem pensar
nos pontos finais que deixei
de colocar na minha história.

Gosto da chuva no molhado...
Os canteiros me dão lembrar
dos jardineiros que ficaram
com sementes na memória.

Gosto de causas sem efeito...
De maus sonhos sem motivo
de morrer sem ser preciso
por ter fama sem proveito.

Gosto das coisas como são...
Da vida como um desterro 
da sombra indo ao enterro
da sombra morta no chão...

Afonso Estebanez