sábado, 15 de novembro de 2008

SONHO COSTUMEIRO


SONHO COSTUMEIRO

Eu sonho-te nas ramas das videiras
como frutos dos vinhos de venturas
em rebentos de graças costumeiras
que me lavam de brisas e ternuras.

E vejo como em sonhos de pastora
tanges de mim sentidos já remidos
e me levas em sombras protetoras
à ravina de amor dos teus abrigos.

E tenho-te nas heras dos penedos
meu pássaro cantor que a ti visita
nos jardins de secretos arvoredos
onde teu sonho de mulher habita.

E fico em ti como o destino antigo
tocado para mais além da história
onde soubeste que sonhar comigo
seria o amor deixado na memória.


Afonso Estebanez

CORPO DE DELITO (Inventário & Conclusão)


CORPO DE DELITO
(Inventário & Conclusão)

Tudo o que me cumpre registrar agora
é o cadáver de uma doméstica despida
concluindo o relato de corpo de delito
de uma mulher aparentemente suicida...

Uma vela acesa no fundo de um prato
raso e um punhado de rosas vermelhas
num vaso e um cigarro barato apagado
no cinzeiro junto a um copo de vinho
sobre a mesa. Uma foto de um menino
louro ausente e uma traça na bainha
de um vestido. Essa pobreza presente
e um bilhete escondido entre as flores...
Mais um caso de amor mal resolvido.
Suicídio? O veneno na pia do banheiro
uma cômoda, uma moringa, um pente
o espelho partido, um velho chaveiro.
Um colchão, um lenço, uma foto 3x4
e um beijo de batom no travesseiro...

E, assim, o instante esperado
do inesperado acontecimento
o mistério profundo no fundo
da lama
da chama
da cama...
E seu maior milagre do mundo:
a esperança da vida inteira
desesperada num segundo...

A. Estebanez

MARAMOR ABERTO...


MARAMOR ABERTO...

Muito perto de tua vida
em mar aberto perdida
a minha vida é sozinha

ai de minhas caravelas
eu pareço a vida delas
vivida dentro da minha

e essas velas arriadas
suas almas ancoradas
nessa agonia marinha

amor e cravo e canela
tua brisa e uma janela
reaberta para a minha

oh quando dia já morto
ancorado no teu corpo
vôo leve de andorinha

vou vivendo revivendo
e minha vida trazendo
a tua dentro da minha...

A. Estebanez

A FOTO NA PAREDE


A FOTO NA PAREDE

Meu retrato na parede
só traz uma novidade:
o fundo tinto de verde
ficou tinto de saudade.

O olhar pálido de sede
no poço da eternidade
é a luz filtrada na rede
da grade da liberdade.

Uma ruga me comove
de ter restado na vida
do nada que me ficou.

E só o sonho se move
na retina amanhecida
desta foto que restou.

A. Estebanez

ALGUMA ANGÚSTIA


ALGUMA ANGÚSTIA

Não suporto esse perfume
com lembrança de partida
e não suporto o queixume
desta angústia consentida.

Não suporto esses jamais
dos meus dias de finados
da memória de meus pais
nos jardins abandonados.

Nem suporto esse destino
dos meus mares afogados
num naufrágio vespertino
de sonhos não navegados.

Não suporto mais saudade
não suporto o nunca mais
nem suporto a eternidade
dos meus navios sem cais...

A. Estebanez