sábado, 22 de novembro de 2008

MARIANA


MARIANA

Do quarto de Mariana
(Mariana a empregada)
não levarei esta santa
na parede pendurada...

Nem aquela falecida
rancorosa do pecado
nem aquela pecadora
de desejo hipotecado...

Levarei o retrato 3x4 de Mariana,
a que foi mártir muito mais
do que todas essas santas
funcionárias da religião...

A que entregou a própria carne
ao martírio de todos os pecados
e sofreu a calúnia pelos que não cometeu...
Malgrado o tudo
o porém contudo
o nada sobretudo
do insensível eu...

Mariana também fez um milagre:
um homem amava Mariana...
(O nome dele era o meu!).

Afonso Estebanez

ENCONTRO MARCADO


ENCONTRO MARCADO

Teu futuro é o meu agora
do teu tempo despertado
o chegar antes da aurora
de teu encontro marcado

o que chega vai embora
em pedaços de passado
o presente não tem hora
só meu agora esperado

meu amor estava longe
e nem Deus sabia onde
teu amor o encontraria

foi preciso então morrer
e esperar meu renascer
para ver se eu te veria...

Afonso Estebanez

AMIZADE – FLOR DE ESPERANÇA


AMIZADE – FLOR DE ESPERANÇA

Sou louco que acredita em esperança.
Sou as sístoles e diástoles das ilusões.
Reflito luzes das auroras impossíveis
reabrindo janelas azuis nos corações...

Tu me entranhas de bênçãos e divino
bafejo de ternura suave e comovente...
Exorcizas meus sonhos de fantasmas
como anjo que me fala complacente.

E és como um luminar sem sombras
abrindo portas trancadas pelo tempo.
Ave o amor que tira dos escombros
meu pássaro cantor sem banimento...

Cúmplice do bem que trago n’alma
e testemunha transitiva da memória!
Podes vir! Tua mão é minha palma
nos escritos de minha vaga história...

Afonso Estebanez

ESSE AMOR QUE MORA EM MIM...


ESSE AMOR QUE MORA EM MIM...

Eu sei do amor como do mar as quilhas
dos barcos como o leme dos barqueiros
ancorados no sonho das remotas ilhas
do destino onde ancoram marinheiros...

Deus não desliga o amor de seu destino
se o destino do amor é o de ficar ligado.
Vem a esperança e traz no amor o hino
de louvor pelo amor de mim anunciado...

É místico labor fazer do amor o outono
em sortilégio de esperança e ser assim
como esse mágico viver além do sonho
da verdade do amor que mora em mim...

Afonso Estebanez

CENTELHA


CENTELHA

Nunca espero desta vida
o que a vida não me deu
minh'alma compadecida
é do amor que renasceu.

Corações a toda a brida
o meu nas beiras do teu
mas tu amavas dividida
sem saber qual era meu.

Montanhas a fé remove
e o amor é que comove
a centelha dessa chama

que me dói e não apaga
e me diz que não acaba
que o amor inda te ama.

Afonso Estebanez

LIVRO DE VIAGEM OU DO DEPOIMENTO


LIVRO DE VIAGEM OU DO DEPOIMENTO

PRIMEIRO
que tudo aceito a tirania da saudade
que levo como prova de amor envergonhado:
minha gente submetida da América deBaixo
é a puta rendida da América deCima.
As gaivotas negras da paz estão pousadas
nas sombras das pedras machucadas pelo tempo
– a decidir caminhos que vão não sei pra onde
gritando liberdade de não sei o quê.

O que humilha mesmo é essa guerra de muletas
onde a vergonha da derrota nos obriga
a colher restos de louro jogados pelo chão.
Acostumamo-nos a estender as nossas mãos estradas
e os nossos braços trilhos às locomotivas
que colidem todo o dia com o nosso coração.

E vamos passando em nós uma cidadezinha antiga
onde o Rei um dia prometeu passar...
– E não passou!

Não sei onde arranjei essa coragem de dizer
que nossas guerras são de auroras
renascentes na paz do sangue verde matutino
da criança que ainda acordará dentro de nós...

SEGUNDO
a prova do tempo
o irmão cosmoascencionário
não tem ódio nem amor...
Apenas curte a cobiça
do enteu bdélio e formal
– o degas imperador.

Morra a flor, mas guerra é guerra.
Nos bate-bocas da paz
make tecnic of love!
Desde que inventou a fome,
das primas virgens não há
uma só que ele não prove.

Fora, faz praças de sangue
para mostrar na cozinha
aos irmãos que é o mais forte...
No momento da partilha,
se quiser levar a vida
que leve também a morte.

Fraternidade promíscua!
Faz pensar que o beijo seja
a arma com que se apossa...
No entrevero da conquista,
desfralde a sua bandeira...
Mas nunca defraude a nossa!

TERCEIRO
mundo ou planeta
ou cortina de montanhas
onde as mãos que não semeiam
tiram flores das entranhas...
Onde o canto se constringe
com mil facas na garganta
que pra viver em que ouve
precisa matar quem canta.

Ninguém sabe a leite ou mel
estrangeiras ilusões
sob a terra prometida
as sementes dos canhões.
Torne ao chão o que é do chão
cada um tem seu processo
e ninguém condene a falta
quando peca por excesso...

Terras, máquinas, nem sempre
põem coroas em quem vence...
Pelo homem haja quem faça,
não haja nunca quem pense.
A semântica da língua
é reserva do senhor...
– Amados, não sejais mudos,
envenenai-vos de amor!

QUARTO
de família. Odor de gasolina na floresta.
Mulheres cheirando a flor de arroz
chapéus-de-palha na cabeça.

Ah, crianças morrem
porque não sabem que há flores
que são napalms.

Os homens voltam dos pântanos
os alvos dentes camuflados
pelo silêncio premonitório da família.

Quando estiverem todos dormindo
o profundo sono da tragédia
os passarinhos inventarão a guerra...

QUINTO
milênio de paz e mistério
nos alvos vultos de voláteis vestes
onde vem leve o vento flautear.

Na pachemina em sândalo na seda
que vão cantando músicas de vidro
purificando os dedos no tear.

Um rebanho se move lentamente
como um rio tangido pelo canto.
Nos braços da mãe um anjo levita...

Ouvem-se passos de velhos amigos
e tece em silêncio toda a família
o pão de amor com que se comunica.

Sáris brilhantes teares incenso...
Aurora policrômica de um deus
que nos fala como antigo parente.

É o segredo da paz que não sentimos
quando nós sem amor lhe desvendamos
o mistério da fome que não sente.

SEXTO
continente sem amor amado
comprado a peso de ouro
no mercado inflacionário dos brancos.

Os guetos são o sexto sentido
da liberdade currada.

Os mercadores da guerra acreditam
que o amor odiado morre com a morte.

Mas o preço do ódio vendido
é ser vermelho o sangue dos negros...
– Livre, há de querer provar o quanto é forte!


CIRANDA cirandinha
vamos todos cirandar
nossa paz saiu de casa
mas um dia vai ficar...
ou foi dar uma voltinha
para nunca mais voltar...

A. Estebanez
(Prêmio “Troféu Casimiro de Abreu” do III Torneio Nacional da Poesia Falada de 1970 – Governo do Estado do Rio de Janeiro – Secretaria de Educação e Cultura – Departamento de Difusão Cultural. O poema foi cassado sob censura do Departamento de Ordem Política e Social (Polícia Federal) para apresentação pública pela Tv Globo durante a repressão do regime militar instalado no país em 1964, sob os veementes protestos de Cassiano Ricardo, então presidente da Comissão Julgadora do concurso, que nem assim conseguiu passar pela mordaça da censura federal)