sábado, 20 de dezembro de 2008

FATALISMO


FATALISMO

Um dia podereis colher as rosas de vossos próprios jardins...
Um dia alguém acenará do outro lado da rua e vos dirá “Bom dia!”...
Um dia o expresso vai parar fora do ponto para embarcar um ancião...
Um dia podereis cruzar as avenidas sem temer balas perdidas...

Uma criança poderá sorrir compadecida de qualquer desconhecido...
As cadelas no cio poderão cruzar livremente pelos becos da cidade...
Os negros poderão exibir alegremente a moléstia racial dos brancos...
A liberdade poderá ser proclamada em paz na praça de Bucareste....

Mas vós estareis mortos de vergonha
no dia em que puderdes ostentar publicamente o gesto mais discreto
de como colher miniaturas de lua cheia nos ramos das videiras...
No dia em que esse chão, que é de pedras, for de estrelas...
No dia em que os canhões se transformarem em bicicletas de Pequim...
No dia em que a vergonha nacional
derrubar os seus muros de Berlim...

Ou já estareis mortos...
Definitivamente mortos...

Como morrem os pássaros...
Como morrem os poetas...
Como secam os jardins...
E se calam os profetas...

Como se exaure a esperança...
Como morrem as crianças
com suas almas desertas...

Afonso Estebanez

FACE TO FACE


FACE TO FACE

De todos os momentos insondáveis
mais bonitos da vida de uma mulher
– aquele em que ela toma a bandeira
sacode a poeira da breve amargura
e faz vibrar na alma as armas doces
de todo o encanto e formosura
na defesa ou conquista do amor
fundamental de sua vida...

Esse é o mais belo de todos.

Face a face, a alma de um homem
que tem as portas e janelas abertas
para o amor mais simples e fraterno,
sempre sabe quando esse momento
o encontra... E talvez o faça eterno...

Andar pelo mundo de vida pronta
e alma completa bem poderia ser,
a despeito de todas as melancolias
das prontas filosofias de plantão,
a maior e mais sábia recomendação
para os que acreditam ser possível
viver com a cabeça nas estrelas
e os pés no chão...

E não é tão complicado assim
caminhar num chão de estrelas...

Afonso Estebanez

EXALTAÇÃO


EXALTAÇÃO

Meu ser entrego ao derradeiro alento
no desenlace de minha alma ungida
pela esperança de num vão momento
galgar a morte na ilusão da vida.

Mas tudo o que me resta é a fé contida
num rasgo de prazer do sofrimento
de rebuscar na treva a luz perdida
no inferno elemental desse tormento.

E em já meu ser demente e sibilino
qual num culto de amor semidivino
minh’alma chora, hesita, mas persiste...

E flui por entre estrelas e alvoradas
num turbilhão de luzes deflagradas
ante a certeza de que Deus existe!

Afonso Estebanez
(Premiado em 1990 no “Concurso Nacional de Sonetos”
promovido pela Casa do Poeta “Lampião de Gás” – SP.
Comemoração ao centenário da morte de Guilherme de
Almeida)

EU VOU


EU VOU

Se for preciso reinventar
a vida e me fazer de conta
e retomar a alma já pronta
por onde nada mais restou...
Eu vou!

Se for preciso restaurar
a dor e me doer de novo
no cio ardente e copioso
do mal ausente que ficou...
Eu vou!

Se for preciso reanimar
a luz extinta no crepúsculo
imponderável do minúsculo
grão de areia que se apagou...
Eu vou!

Se for preciso me afogar
no charco por mero martírio
ou por razão ou por delírio
o lírio diga por quem vou...
Eu vou!

Se for preciso reinventar
o amor numa paixão suicida
e reencontrá-la além da vida
na lida que a paixão deixou...
Eu vou!

Afonso Estebanez

ETERNIDADE COMPARTILHADA


ETERNIDADE COMPARTILHADA

Quando eu for desta vida à eternidade
que o seja devagar sem nenhum medo
de estar indo e deixando uma saudade
de amores meus vividos em segredo...

Nessa viagem quero pôr meus braços
e os mais secretos ímpetos das mãos
em teu corpo tomando meus regaços
no abraço de dois seres quase irmãos.

Quero ir fecunda à minha vida nova
onde eu te encontre repentinamente,
onde os dias do amor que me renova
sejam meus dias férteis de semente.

Nosso êxtase será como o dos anjos
nosso encontro será num grito mudo
a proteção do amor é a dos arcanjos
e que o amor de Deus nos seja tudo!

Poema a quatro mãos de:
Afonso Estebanez & Sandra Almeida

ESSE AMOR QUE MORA EM MIM...


ESSE AMOR QUE MORA EM MIM...

Eu sei do amor como do mar as quilhas
dos barcos como o leme dos barqueiros
ancorados no sonho das remotas ilhas
do destino onde ancoram marinheiros...

Deus não desliga o amor de seu destino
se o destino do amor é o de ficar ligado.
Vem a esperança e traz no amor o hino
de louvor pelo amor de mim anunciado...

É místico labor fazer do amor o outono
em sortilégio de esperança e ser assim
como esse mágico viver além do sonho
da verdade do amor que mora em mim...

Afonso Estebanez

ERRO DE FATO



ERRO DE FATO

Maria dava seu leite
para o filho do patrão.
O patrão, porém, comia
(que Maria lhe servia)
toda a carne do João...

Mas João não tinha nada
que tomar satisfação!...
Então o causo se acaba
(por amor tudo desaba)
na evidente conclusão:

Maria morreu na frente
do revólver do patrão...

Afonso Estebanez

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

ENTRE UM SONHO E OUTRO...


ENTRE UM SONHO E OUTRO...

Devo empreender uma viagem...
Mas não quero Londres e muito menos a Paris revisitada.
Lá as gentes são todas iguais a mim. Sangue bom à flor da pele
igual à minha ruim. Conheço a guarda real o big-bem e o jardim.
Como se não houvesse periferia...
Como se houvesse algum jardim...

Devo empreender uma viagem...
Para um pouco mais além da minha praça tropical.
E, quem sabe, alcançar os meus sem-sonhos não vividos
que sempre estiveram na feira dos sábados de minhas mãos.
Como se houvesse sonhos...
Como se houvesse mãos...

Devo empreender uma viagem...
E comprar alguma gleba nos alvos prados das nuvens
construir com minhas mãos os meus sem-sonhos já vividos
entre pedras de granizo com penugens numa casa de algodão.
Como se houvesse sonhos...
Como se houvesse mãos...

Devo empreender uma viagem...
Para conversar com meus anjos já bem mais envelhecidos
sobre como é ficar ou então nunca ficar a um passo do paraíso.
Esse é um dos meus sem-sonhos refeitos com minhas mãos.
Como se houvesse sonhos...
Como se houvesse mãos...

Afonso Estebanez

CAMPO DE MEDITAÇÃO


CAMPO DE MEDITAÇÃO

As estradas que sempre iam,
continuam indo, a despeito de mim
que por hora estou voltando...

Mas quando não houver
mais estradas para quem vai,
suave será a carona dos riachos
que são estradas feitas de lágrimas
de saudade dos amores viajados.

Continuarão, como os dias e as noites,
na direção do reino do nunca mais...
E como as rosas num leito de orvalho,
é possível que eu me reencontre comigo
em qualquer curva do crepúsculo
para o vasto espanto das manhãs
que terei deixado para trás...

E não posso evitar que seja assim:
as estradas levando a memória
do quanto eu ando de rosas
nas veredas do meu jardim...


Afonso Estebanez

domingo, 14 de dezembro de 2008

ENTRE PARÊNTESES


ENTRE PARÊNTESES

Minha vida não é tua
nem é minha tua vida...
Somos partes
fragmentadas
de uma ânfora
partida.

Não são tuas minhas liras
nem tuas liras são minhas...
Ocultamos
a alma nua
na paráfrase
das linhas.

Tuas mágoas não são minhas
minhas mágoas não são tuas...
Somos os lados
dessas calçadas
desencontradas
das ruas.

Por mim não te desesperas
nem por ti eu me desatino...
Somos apenas
os parênteses
de uma linha
do destino.

Afonso Estebanez

ENSINA-ME JESUS (Canção de Louvor)


ENSINA-ME JESUS
(Canção de Louvor)

Oh, Jesus vem estes laços
de meus braços desatar...
Dos Teus passos me aproxima
e me ensina a caminhar...

Eu preciso de Teus lábios
como os sábios pra falar...
Com parábolas me anima
e me ensina a Te louvar...

Oh, Jesus, tira as algemas
das penas do meu pecar...
Dá-me Tua voz divina
e me ensina a Te adorar!

Afonso Estebanez

ENIGMA DE ME VOLTAR


ENIGMA DE ME VOLTAR

Talvez eu volte corrimão de rios tortos
por onde vem beber a lua amedrontada...
Espírito cantor dos pássaros já mortos
sob os destroços de uma flor inacabada...

Caravelas de nuvens como pressupostos
do transporte por céu da luz embriagada...
Quiçá refaça-me de restos recompostos
com os pedaços de minha alma fatigada...

Talvez eu venha como o ser e a solução
como ave presa na lembrança da canção
ou como flores despojadas num jardim...

Talvez eu volte com um coração enfermo
e tente a morte retirar-me de mim mesmo
mas só eu mesmo posso me tirar de mim...

Afonso Estebanez

DOCEMENTE AMARGO


DOCEMENTE AMARGO

Teu amor é como a pluma
de uma luz na madrugada
não ama aurora nenhuma
que não a luz da alvorada...

Meu amor foi uma escuna
sem partida nem chegada
na noite escura da bruma
de uma dor não dissipada...

Teu amor é como os rios
conduzindo meus navios
que se perderam do mar...

E o amor doeu-me tanto
como dói só por encanto
pelo encanto de te amar...

Afonso Estebanez

DEVANEIOS DA INSÔNIA


DEVANEIOS DA INSÔNIA

O que faz eterno o instante
em que você ressurge da noite
coroada a face de sorrisos
é o que me diz o amanhecer
dos lírios de como já nasci
de braços abertos.

Já falei a você das folhas que caíram
e do sofrimento levado pelo outono
deixado em cada sombra de seu rosto.

Já mostrei como do fruto renovado
o renascimento da vida é infinito
como o cio das cigarras é o destino
que se cumpre no silêncio da resina.

Você consome o canto e os sonhos
e os mistérios a esmo desvendados
e deixa esse sinal de impenetrável
ausência nas minhas mãos vazias...

Mas onde houver a paz dos rios
tangidos pelos caminhos bebidos
de minha boca, eu irei beirando
as margens inventariadas no rol
dos padecimentos...

Só me resta esperar que esta noite
você volte a embalar com beijos
meu sono perdido...

Afonso Estebanez

CUPIO DISSOLVI


CUPIO DISSOLVI

È più necessario che nella carne resti:
o amor ardente sob a cinza do desejo
à alma cúmplice no céu inda me reste
a vida eterna do milagre de teu beijo.

È più necessario che nella carne resti:
o amor a termo revivido num lampejo
a alma rediviva e a graça que reveste
o dom da luz original que em ti revejo.

Amor é agonia em transe e dadivoso
estado primitivo em cânticos de gozo
a fonte de poder do amor da criação.

Amor é dom insuperável que só ama
e cria-te mulher e deusa te proclama
esse cupio dissolvi da imortal paixão...

Afonso Estebanez

CORAÇÃO DE NAMORADO


CORAÇÃO DE NAMORADO

Não sei de quantos corações me veio feito
meu coração diverso intensamente amado
ou de quantas guitarras de vibrar no peito
veio-me feito o coração de um namorado!

Não sei de quantos beijos pode ser refeito
um beijo que restou presente do passado.
Ou com quantos abraços restaurar o jeito
de o coração fingir que estava enamorado.

Deixe um pedaço de um poema na janela
diz que a última rosa sobre a mesa é dela
e deixe-a acreditar no que o amor lhe diz...

Põe teus lençóis de estrelas nos telhados
estilhaços de luz no chão dos namorados
se é falta de razão que deixa o amor feliz...

Afonso Estebanez

sábado, 13 de dezembro de 2008

CONTAGEM REGRESSIVA


CONTAGEM REGRESSIVA

Dez... O eco milenar de um tiro ouviu-se.
Tombou um homem como império que ruísse
e a contagem regressiva principia:
como se naquele instante de enfático silêncio
doesse mais a fome negra de Biafra
que, sem vacas pra adorar, há milênios já doía.
Um tiro se repete e em nós a História se repete cada dia.
O vírus do conflito a espécie perpetua
e em cada cérebro pressente uma guerra gradativa
à medida que a contagem regressiva continua...

Nove... O lavrador aguarda a safra sem convicção.
O poeta e o poema continuam mais herméticos.
Os patéticos sorrisos não traduzem sua origem.
A liberdade ferida pelo vício do consentimento
o que faz é construir paredes.
O amor preso em cadeias do diálogo obscuro.
E tudo o que sabemos fazer é omitir: o silêncio
é o tijolo
que acrescentamos sobre o dorso intransponível desse muro.

Oito... Mas nossos filhos saberão de tudo:
a fome não se oculta toda a vida.
Os seios das mulheres de Biafra
irão cobrar seus dias de abundância.
O lavrador reclamará a sua safra.
O amor propalará sua renúncia
e nossos filhos saberão de tudo
porque cada um de nós é uma denúncia...

Sete... Estamos todos sendo expatriados.
Expatriadas as nossas convicções.
Indesejados os filhos de suas mães.
Nós somos deuses levados à guerra.
Semideuses morrendo de fome.
Estamos todos sendo expatriados
transformados em numerosos vietnames.

Seis... É tempo de jogar o último vintém
dos sonhos idos, dos que ainda vêm
e no resto da vida jogar sua riqueza...
Depois a dor pode cobrar seu pranto
cada sonho cobrar seu desencanto
e a tristeza cobrar sua tristeza.

Cinco... Ainda é tempo para amar.
Improvisemos uma primavera
e proclamemos todos nós iguais:
basta de tombar esses impérios
de homens em conflitos raciais.

Quatro... Enquanto estamos à mesa dos famintos
bradando com os negros seu clamor
virão príncipes vestidos de mendigos
suplicar-nos um pouco desse amor.

Três... E os senhores de nossa liberdade
um dia passarão famintos
mas nós estenderemos nossas mãos...

Dois... E os poderosos virão desatinados
matar a fome com o sobejo dos irmãos.

Um... O amor é a neutralização da bomba.

Zero... ?

Afonso Estebanez
(Prêmio “Troféu Casimiro de Abreu” do I Torneio Nacional da Poesia Falada –1968 – Governo do Estado do Rio de Janeiro – Secretaria de Educação e Cultura – Departamento de Difusão Cultural)

AO TE LEMBRARES DE MIM...


AO TE LEMBRARES DE MIM...

Quando te lembrares de mim
não necessitarei da memória
trancada no fundo da gaveta
ou das recordações restadas
na pena separada da caneta.

O ressonho dos teus sonhos
não te lembrará quem fomos
quando te lembrares de mim.

E serei tua manhã de manhã
na soleira de meu doce olhar
para fitar na tua luz ausente
o destino de reviver em mim.

E já terei reescrito a história
de tanto amor não resolvido
nas pétalas das rosas secas
que tu deixaste desfolhadas
na saudade do meu jardim...


Afonso Estebanez

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

CENTELHA


CENTELHA

Nunca espero desta vida
o que a vida não me deu
minh'alma compadecida
é do amor que renasceu.

Corações a toda a brida
o meu nas beiras do teu
mas tu amavas dividida
sem saber qual era meu.

Montanhas a fé remove
e o amor é que comove
a centelha dessa chama

que me dói e não apaga
e me diz que não acaba
que o amor inda te ama.

Afonso Estebanez

CANTINHO DA SAUDADE


CANTINHO DA SAUDADE

Ela soltou-se de um sonho
como quem acorda o beijo
no instante da eternidade.

A todo o instante suponho
ser um sonho meu ensejo
de sonhar de ser verdade.

E ela se apegou ao sonho
e me fez sentir num beijo
impressões de eternidade.

Mas ela perdeu meu sono
e eu durmo com o desejo
num cantinho da saudade.


Afonso Estebanez

CÂNTICO DE AMOR NOTURNO (Do Saltério de Sarom)


CÂNTICO DE AMOR NOTURNO
(Do Saltério de Sarom)

A hora é alta! E a noite é numerosa!
Morta é a lua no abismo da penedia!
Brame o oceano e freme a ventania
nos funerais noturnos da esperança...
E nem o amor pode fazer mais nada!
Deixei que minha vida se exaurisse
e que a escuna da alma se esvaísse
à bruma na memória da lembrança!

Oh, torrente assombrosa de paixões...
Não há rosa na vida que não sangre
ou lírio que viceje sobre o mangue
tinto de sangue ao látego do vento!
Divino amor dos deuses decadentes...
A aurora é luz na sombra iluminada
de uma opereta infrene e inacabada...
O amor saiu de cena antes do tempo!

Oh veredas lunadas! Oh candeias
do último luar que morre em mim
como luz entre as urzes do jardim
ou o ninho entre sarças encoberto!
Último cântico dos mortos sonhos
idos na flor ardente de Hiroshima!
Sonhar de amor que dói e desatina
e esvair-se como o oásis no deserto...

Procurei pelo amor por toda parte...
Debalde! Nem os cânticos dos rios
nem os porões escuros dos navios
puderam-me dizer onde encontrar!
No sonolento olhar das aves puras
na cruz da sepultura de meus pais
ou na honra sem dor dos samurais...
Não se vê onde possa o amor estar...

Quem sabe se nos idos medievais!
No princípio dos meios e dos fins...
Nos berçários azuis dos querubins
onde o amor é prodígio da paixão!
Mas amor sem o amor está banido...
Espada que não serve ao cavaleiro,
aventuras do barco sem barqueiro
pelos mares do amor sem a ilusão!

Há ainda os cadáveres das mães
jazidos na poeira dos escombros...
Há o peso dos corpos e os ombros
no fúnebre despejo das tragédias!
Ah, cântico de morte! Madalenas!
Chorai por esperanças prometidas
no jubiloso regresso das partidas,
o lado menos triste das comédias...

Chorai pelo destino de Desdêmona!
De Beatriz de Julieta e de Eurídice...
Cantai o amor maior do apocalipse...
Pelo amor de Jocasta! Oh corifeus!
Pela paixão dos astros e do eclipse...
Das prostitutas pelo amor proscrito
acolhido pelo amor de Jesus Cristo,
o Bem Supremo da paixão de Deus!

Deus! Depõe esse cântico de amor
nas veredas profundas do oceano!
Sustenta esse meu doce desengano
por esses mares de paixões e além...
Faça-me ânfora de um vinho novo.
Devolve a profecia ao seu profeta
e esse dom da poesia ao seu poeta
que tange às portas de Jerusalém!

Quero o amor infinito dos amantes
além dos fundos falsos das janelas
de onde o cio amoroso das gazelas
fertilize o deserto além do Hebrom...
O aroma dos vinhedos verdejantes
os amores do gamo sob as vinhas
guardadas pelo amante das rainhas,
como as rosas dos vales de Sarom!

Afonso Estebanez

CANÇÃO DE BEM-QUERER


CANÇÃO DE BEM-QUERER

Ensina-me a ser assim
com tuas asas tão leves
tão breves quanto suaves
como aquelas semibreves
do canto de minhas aves...

Fica perto do meu céu
como a flor encabulada
na beirada de um jardim
ou no fim da caminhada
que acaba dentro de mim...

Fica como se tivesses
teus sentidos acordados
no meu calvário sem cruz
e nossos corpos pregados
com cravos feitos de luz...

E me vem como se vai
fingindo que vai embora
teu agora é o nunca mais
como quem sabe da hora
mas ir embora jamais...

Afonso Estebanez

CANÇONETA


CANÇONETA

Eu diria – são flores as pedras
em que pisam teus pés viajores...
Tuas dores – diria – são quedas.
Eu diria – nas pedras de flores.

Sobretudo no vento que passa
como brisa tu passas no tempo.
Porque voas tão cheia de graça.
Eu diria – nos braços do vento...

E diria que a estrada é tão curta,
quem sabe não seja uma estrada.
Eu diria – uma entrada noturna
do caminho de alguma alvorada...

Peregrina, são flores as pedras
na cantiga de amáveis cantores.
As veredas – diria – são breves.
E diria que as pedras são flores...

Afonso Estebanez

CANÇÃO SONOLENTA


CANÇÃO SONOLENTA

Correm lentos noite e rio
nos atalhos entre o vento
aquecendo a mão do frio
nos retalhos do relento...

A brisa vem-me acalmar
de antigo ressentimento
e o vento me vem cantar
de tanto contentamento.

Na alameda à luz da lua
sob o céu além do tempo
nas poças d’água da rua
entre luzes me contemplo.

Futuro não tem passado
e o presente não tem fim.
Há em mim um outro lado
de um outro lado de mim...

Jaz-me a alma repousada
e uma flor calada em mim
como saudade encostada
no canteiro de um jardim...

Afonso Estebanez

INICIAÇÃO DA LIBERDADE


INICIAÇÃO DA LIBERDADE

A alma forja o bem na dor do mal
e o espírito aos lanhos da matéria...
Na carne a fome crava seu punhal
nas entranhas famintas de miséria.

Cada gota de sangue cada artéria
deflui do corpo o cáustico e letal
veneno em que declina deletéria
da alma a pátria amada e triunfal.

Mas já transcende a paz à tirania
ao desamor cativo a consciência
liberta dos porões da insanidade...

E lança de um clamor sem agonia
o sêmen genial da independência
sobre o leito nupcial da liberdade!

Afonso Estebanez

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

CANÇÃO REMOTA


CANÇÃO REMOTA

E estou aqui meu amor
na beira da minha vida
não distante do jardim
que volta da primavera
em busca daquela flor
deixada dentro de mim.

É meu anjo debruçado
na janela de uma rosa
que o destino ofereceu
ao voltar da primavera
em busca daquela flor
que a tua vida me deu.

Liga não... Viver assim
é um cântico de flauta
quando bate o coração.
E estar aqui à tua volta
é somente o estar aqui
para ouvir uma canção...

Afonso Estebanez

CANÇÃO QUE VEM DE LONGE


CANÇÃO QUE VEM DE LONGE

Abro o álbum de retratos
sem querer todas as vezes
vivo de novo os retalhos
da vida que já vivi:
a criança
o brinquedo
a escola
a rua
a casa
onde nasci...

É o álbum que está velho.
Não fui eu que envelheci.

A cidade minha terra
minha terra infância minha
já alguém cantou por ti?
É o álbum que está velho,
não fui eu que envelheci...
Palmeiras
furando o espaço
muros velhos
guardando vozes
nas velhas casas...
De noite a lua
passeia na rua
rua de prata...
Pela cidade
vão violões
cantagalando
serenatas...

Parece que tudo morreu?
É o álbum que está velho.
Nada disto envelheceu...

Afonso Estebanez

A FOTO NA PAREDE


A FOTO NA PAREDE

Meu retrato na parede
só traz uma novidade:
o fundo tinto de verde
ficou tinto de saudade.

O olhar pálido de sede
no poço da eternidade
é a luz filtrada na rede
da grade da liberdade.

Uma ruga me comove
de ter restado na vida
do nada que me ficou.

E só o sonho se move
na retina amanhecida
desta foto que restou.

Afonso Estebanez

CANÇÃO PARA VOCÊ VOLTAR...


CANÇÃO PARA VOCÊ VOLTAR...

Como águia nas vertentes do infinito
você não pode mais perder-se assim
como o corpo da alma sem o espírito
como flor que se ausenta do jardim...

Você não deve nunca mais perder-se
de mim enquanto não for hora ainda...
Enquanto for tão cedo e o amanhecer
é sonho que desperta, mas não finda.

Talvez deva supor que sua ausência
seja a parte acordada de meu sono...
E a minha ensolarada inconsciência
seja a linda manhã do ainda outono...

Por isso não se ausente mais de mim
que sempre fiz você dormir de amor!
Como as crinas douradas do alecrim
que ao pôr-do-sol hospeda a sua flor...

Você não pode mais deixar-se alada
ao tempo como o vento sobre o mar...
Você tem que voltar tão despertada
como um sonho cansado de sonhar...

Como águia que regressa do infinito...
Enfim! É justo amar o amar-se assim...
Como alma que retoma seu espírito...
Como flor que retorna ao seu jardim...

A. Estebanez

CANÇÃO PARA MONICA


CANÇÃO PARA MONICA

O poeta é quem se alegra
de não estar indo embora
com a alma sobre a pedra
sentada à beira da aurora.

Um poeta é feito de brisa
com pedaços de alvorada
que da aurora ele precisa
sem que precise de nada.

O poeta é a parte da vida
reencontrada na quimera
de uma flor despercebida
de uma antiga primavera.

Ai da perda mais perdida!
Ai, alma de amor repleta!
Ai, razão incompreendida
em minha alma de poeta...

Um poeta é uma metade
do amor que sonha viver
como faz minha saudade
com saudades de te ver...

Afonso Estebanez

POEMA & TEOREMA


POEMA & TEOREMA

Qual dos lados
de uma esfera
é mais bonito?

Qual o ponto
de um círculo
que é infinito?

Seria o cubo
numa esfera
a geometria?

Toda palavra
é uma esfera
ou é poesia?

E o fonema,
é geometria
ou teorema?

!As palavras
são do estilo
o mais hábil
num poema.

Afonso Estebanez

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

CAMINHO DE CHÃO


CAMINHO DE CHÃO

Minha vida foi de pedra
meu caminho foi de chão
batido no leito seco
dos rios sem direção...

Não tive nenhum destino
nem o quis saber em vão
senão o rumo das pedras
do meu caminho de chão.

Fui timoneiro de nuvens
naveguei a solidão
nas pedras da calmaria
do meu caminho de chão...

Minha vida foi de pedra
meu caminho foi de chão
como sombra fugidia
da esperança sem razão.

Fui profeta de meus sonhos
sem nenhuma explicação
como uma esfinge de pedra
no meu caminho de chão.

Uma flor qualquer no vale
um som qualquer de canção
são restos de minha vida
no meu caminho de chão...

Afonso Estebanez

BREVES VARIAÇÕES PELAS RUAS DO CARMO



BREVES VARIAÇÕES
PELAS RUAS DO CARMO


Viagem num sonho parado
um pouso do céu sobre a terra
um raio de luz numa sombra
momento de paz numa guerra.

Antiga lembrança encontrada
cantiga-de-roda no vento
a flor embutida nos lábios
da amiga que volta do tempo.

Igreja esculpida nas nuvens
no prumo de etéreo compasso
deixando no traço uma nave
singrando o oceano do espaço...

Por entre desvãos de arvoredos
as casas num cais de fachadas
são como alvos barcos deixados
ancorados pelas calçadas...

Janelas fechadas são livros
abertos de lendas antigas...
Memórias de amor relembradas
de histórias há muito esquecidas.

Nos muros de musgo encrostados
esparsos gradis de coral
ao longo das rotas das ruas
submersas num tempo irreal.

Os sinos vassalos das horas
ressoam nos vãos das neblinas
tangendo marolas de nuvens
sem rumo por sobre as colinas.

Afonso Estebanez

DESEJO DE AMAR...



DESEJO DE AMAR...

Eu pus minha vida no vento
e o vento aprendeu a cantar
levando-me todo o lamento
do encanto na brisa do mar.

A vida era todo o momento
que o vento deixava passar
na breve cantiga do tempo
na ausência infinita do mar.

E não era paz ou tormento
tentar ir-me embora e ficar
à beira do amor ao relento
ouvindo o lamento do mar.

Então pus o corpo sedento
e o ventre da brisa no mar
e a alma salgada do vento
refez meu desejo de amar...

Afonso Estebanez

AMAR É PRECISO...


AMAR É PRECISO...

Já furtei sonhos do mundo
já apanhei brisas do vento
enganei meu ser profundo
por amar seu pensamento.

Eu mesmo me dei o braço
só com medo de esquecer
de lembrar do seu abraço
que em você me fez viver.

Como a âncora e o navio
um dos dois deve atracar
até que um sonho baldio
nos carregue para o mar.

Amor no mar é profundo
tão fundo que nem se vê
o mar no topo do mundo
fremir de amor por você!

Afonso Estebanez

NÃO VOU DESISTIR DAS ROSAS...


NÃO VOU DESISTIR DAS ROSAS...

Faço um poema como meu jardineiro faz a rosa:
porque rosas são rosas, não precisam de nada.

O momento que a vida cria para me contemplar
com restos de esperanças de amor sem limites,
levo-os na alma foragida ao mais além de mim.

Despejo-o no ouvido de Deus meu hospedeiro.
Deixo-me desatinar pelo meu louco de aluguel,
implorando para que ao menos o último bafejo
da brisa passageira seja um beijo de presente
para as rosas do meu jardim...


Afonso Estebanez
(Presente de Natal/2008 a todas as almas
femininas que durante este ano honraram
como “deusas” o solo virtual desta página)

CANTIGA DE FICAR...


CANTIGA DE FICAR...

Quando chego você já nem liga
disfarça e me beija fingindo agradar.
Mesmo assim, sendo tudo mentira,
eu me deito em seu colo
e me deixo enganar...

Você deixa que eu faça e aconteça
que fale da vida e do amor por você...
Mas eu sei que você não me escuta
disfarça e me abraça fingindo entender.

Já é hora de nós decidirmos
e irmos embora e parar de sofrer.
Mas se volto pro meu coração
e bato na porta,
quem abre é você...


Afonso Estebanez

MALMEQUERES, BEM-ME-QUER? (haikais)


MALMEQUERES, BEM-ME-QUER?
(haikais)

Virtudes humanas
são como os frutos mais altos...
Colhem-se a pedradas.

E para que as flores,
se me feres com espinhos
quando te dou rosas?

Barcos... Ah, os barcos!
Açoitam com suas quilhas
as ondas que os beijam!

Visitei o amigo
para celebrar a paz.
E perdi a minha...

Refúgio de lágrimas,
meu velho salgueiro ensina-me
a chorar sozinho...


Afonso Estebanez

“DE PROFUNDIS”


“DE PROFUNDIS”

Dormia a noite mais cedo
que a manhã já era tarde
se os dias sentiam medo
de acordar em liberdade.

Acordar entre palmeiras
sem o canto dos sabiás!
Despertar horas inteiras
sem saber se havia paz.

Baionetas eram mudas
porém falavam caladas
e cegas ouviam surdas
os gritos das alvoradas.

De profundis a absolvo
a despeito da saudade
de recomeçar de novo
por falta de liberdade!

Afonso Estebanez

COISAS DO CORAÇÃO


COISAS DO CORAÇÃO

Se as pedras não sabem do instinto da flor
que sabem as sombras do instinto de mim
se pedras não guardam memória de amor
nem guardam princípios ou meios do fim?

Quem tem a certeza de algum porventura
se a brisa nem diz quando vem ao jardim,
se cá dentro d’alma há essa doce ternura
de guizos ou mantras ou sons de flautim?

Se eu mesmo não sei o que foi a ventura
dos tempos perdidos do amor em motim,
que entendem os dias de minha aventura
se a aurora só chega em finais de festim?

Se a água das nuvens não sabe da altura
e cai como o arco-íris do céu de carmim,
que sabe o teu pranto da minha candura
que cai das alturas bem dentro de mim?

Afonso Estebanez

PONTO DE VISTA


PONTO DE VISTA

Vendedor de frutas
a mangueira morta
o pomar deserto
os jardins desfeitos.
De noite surgia
a lua madura
entre os galhos
secos...


Afonso Estebanez

EMPRESTA-ME A TUA ALMA


EMPRESTA-ME A TUA ALMA

Já sei por onde escoam as águas da fonte
desse sorriso de cristal que me entorpece
de sonhos o rebanho de minhas emoções.

Ecoa-me a canção destas amenas águas
que te escorrem das pedras derramadas
na ânfora do corpo em cálice de outono.

E os teus sorrisos são libélulas de beijos
tangidas pelas flautas doces das ribeiras
do impulsivo destino de lavar o coração.

Então me empresta a alma de alvorada
para tirar de ti as pedras dos caminhos
e apascentar as águas do meu ribeirão.

Benditos sejam os clarins da primavera
benditos sejam os que viverão de rosas
porque de espinhos eles não perecerão.

Afonso Estebanez

A ALMA SONHA SOZINHA


A ALMA SONHA SOZINHA


Anda a minh’alma sonhando
tão sozinha e acompanhada,
que às vezes vivo pensando
que a alma sonha acordada.

Mas sonhar é um fio d’água
que sozinho entrega ao mar
muitos afluentes de mágoa
que se escoam sem passar.

Sejam simples como a flor
que sonha sonhos calados
dos que perecem do amor
dos sonhos não realizados.

Somos a curva da estrada
dos sonhos que vão além:
sonhar sozinha sem nada
é tudo o que a alma tem...


Afonso Estebanez

IR EMBORA


IR EMBORA

Esse ir embora só me faz sentido
quando sequer me sei aonde vou
com meu corpo baldio já perdido
da sombra de si mesmo
como um vulto apagado
do outro lado esquecido
pelo lado em que estou.

Partir é não saber se vou chegar.
Ir apenas é tudo o que interessa.
Chegar é não partir e não voltar.
Como um rio que escoa
e seu cantar não cessa
entre as dobras do mar
com a calma da pressa.

Pode ser minha pressa de agora
minha a pressa de nunca chegar
esse jeito de amor indo embora
bem na hora do amor regressar.

Afonso Estebanez

OFERTÓRIO DE BEIJOS (haikais de amor)


OFERTÓRIO DE BEIJOS
(haikais de amor)

Dorme... Os seios nus...
Pulsa uma cruz nos calvários
da minha paixão...

Querias um homem,
mas fazes de mim um deus
na cruz de teus braços.

Ah, de beijo em beijo,
quero ver onde vai dar
teu mapa de sardas...

Plantando em teu corpo,
lanço sementes de beijos
no alto das colinas...

Saciada de beijos,
entregas-me, enfim, a taça
do teu melhor vinho!


Afonso Estebanez

NA BEIRADA DO JARDIM


NA BEIRADA DO JARDIM

O aroma á a parte da alma
da brisa que a chuva deixa
como lembranças da calma
da saudade que se queixa.

Saudades das flores findas
entre as pedras do jardim,
por causa das rosas lindas
que moram dentro de mim.

O orvalho em gotas de luz
é o vinho que excita a flor
como a paixão sem a cruz
em meu calvário sem dor.

Falo que rosas não falam,
mas as minhas falam sim:
o aroma que elas exalam
é o verbo dentro de mim.

Afonso Estebanez

REFLEXÃO SOBRE O NATAL


REFLEXÃO SOBRE O NATAL

Algo entre nós não quer ser a caça do medo
nem a eterna esperança que o medo desfaz.
Algo entre nós que não é feito de brinquedo
mas da quebra dos pactos de vida sem paz.

Algo entre nós como a ressurreição da rosa
num renascer gentil de auroras encantadas
como algo que retorna à infância venturosa
para tecer os novos sonhos de mãos dadas.

Algo entre nós que nos divide e multiplica,
que nos semeia e colhe com o dom da flor.
Algo em silêncio que não fala, mas explica
a razão da regra sem a exceção do amor!

Afonso Estebanez
(Natal de 2008)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

POEMETO


POEMETO


Sobre o rio da vida
uma ponte de amor.
Mas do outro lado,
a felicidade zomba
da minha indecisão...


Afonso Estebanez

cirandinha


cirandinha

não desejes
não me abraces
não me beijes
não me enlaces

eu desejo
eu te abraço
eu te beijo
eu te enlaço

pois deseja
pois me abraça
pois me beija
pois me enlaça

não desejo
não te abraço
não te beijo
não te enlaço

então finjas
que desejas
e me xingas
depois beijas

eu não finjo
que desejo
mas te xingo
com um beijo

Afonso Estebanez

CANTIGA DE FICAR...


CANTIGA DE FICAR...

Quando chego você já nem liga
disfarça e me beija fingindo agradar.
Mesmo assim, sendo tudo mentira,
eu me deito em seu colo
e me deixo enganar...

Você deixa que eu faça e aconteça
que fale da vida e do amor por você...
Mas eu sei que você não me escuta
disfarça e me abraça fingindo entender.

Já é hora de nós decidirmos
e irmos embora e parar de sofrer.
Mas se volto pro meu coração
e bato na porta,
quem abre é você...


Afonso Estebanez