quarta-feira, 16 de novembro de 2016

NONA ROSA DO ORIENTE
Meu jardineiro não faz nada a mais
do que faz o inventor de sensações
de flores sob escombros medievais
dos jardins que viveram de ilusões.

Contenta-me que exalte dos banais
amores, um que os cios temporões
jamais deixam ficar como num cais
fica a memória extinta das paixões.

Meu jardineiro vê nos monastérios
refúgio para as rosas dos mistérios
onde nascem cativas de um jardim.

Então, em mandarim o amor revela
que entre todas a minha era aquela
que ainda faz amor dentro de mim!

Afonso Estebanez 
(16.11.2016)
LIVRO DE VIAGEM OU DO DEPOIMENTO
PRIMEIRO
que tudo aceito a tirania da saudade
que levo como prova de amor envergonhado:
minha gente submetida da América deBaixo
é a puta rendida da América deCima.
As gaivotas negras da paz estão pousadas
nas sombras das pedras machucadas pelo tempo
– a decidir caminhos que vão não sei pra onde
gritando liberdade de não sei o quê.
 
O que humilha mesmo é essa guerra de muletas
onde a vergonha da derrota nos obriga
a colher restos de louro jogados pelo chão.
Acostumamo-nos a estender as nossas mãos estradas
e os nossos braços trilhos às locomotivas
que colidem todo o dia com o nosso coração.
 
E vamos passando em nós uma cidadezinha antiga
onde o Rei um dia prometeu passar...
– E não passou!
 
Não sei onde arranjei essa coragem de dizer
que nossas guerras são de auroras
renascentes na paz do sangue verde matutino
da criança que ainda acordará dentro de nós...
 
SEGUNDO
a prova do tempo
o irmão cosmoascencionário
não tem ódio nem amor...
Apenas curte a cobiça
do enteu bdélio e formal
–  o degas imperador.
 
Morra a flor, mas guerra é guerra.
Nos bate-bocas da paz
make tecnic of love!
Desde que inventou a fome,
das primas virgens não há
uma só que ele não prove.
 
Fora, faz praças de sangue
para mostrar na cozinha
aos irmãos que é o mais forte...
No momento da partilha,
se quiser levar a vida
que leve também a morte.
 
Fraternidade promíscua!
Faz pensar que o beijo seja
a arma com que se apossa...
No entrevero da conquista,
desfralde a sua bandeira...
Mas nunca defraude a nossa!
 
TERCEIRO
mundo ou planeta
ou cortina de montanhas
onde as mãos que não semeiam
tiram flores das entranhas...
Onde o canto se constringe
com mil facas na garganta
que pra viver em que ouve
precisa matar quem canta.
 
Ninguém sabe a leite ou mel
estrangeiras ilusões
sob a terra prometida
as sementes dos canhões.
Torne ao chão o que é do chão
cada um tem seu processo
e ninguém condene a falta
quando peca por excesso...
 
Terras, máquinas, nem sempre
põem coroas em quem vence...
Pelo homem haja quem faça,
não haja nunca quem pense.
A semântica da língua
é reserva do senhor...
– Amados, não sejais mudos,
envenenai-vos de amor!
 
QUARTO
de família. Odor de gasolina na floresta.
Mulheres cheirando a flor de arroz
chapéus-de-palha na cabeça.
 
Ah, crianças morrem
porque não sabem que há flores
que são napalms.
 
Os homens voltam dos pântanos
os alvos dentes camuflados
pelo silêncio premonitório da família.
 
Quando estiverem todos dormindo
o profundo sono da tragédia
os passarinhos inventarão a guerra...
 
QUINTO
milênio de paz e mistério
nos alvos vultos de voláteis vestes
onde vem leve o vento flautear.
 
Na pachemina em sândalo na seda
que vão cantando músicas de vidro
purificando os dedos no tear.
 
Um rebanho se move lentamente
como um rio tangido pelo canto.
Nos braços da mãe um anjo levita...
 
Ouvem-se passos de velhos amigos
e tece em silêncio toda a família
o pão de amor com que se comunica.
 
Sáris brilhantes teares incenso...
Aurora policrômica de um deus
que nos fala como antigo parente.
 
É o segredo da paz que não sentimos
quando nós sem amor lhe desvendamos
o mistério da fome que não sente.
 
SEXTO
continente sem amor amado
comprado a peso de ouro
no mercado inflacionário dos brancos.
 
Os guetos são o sexto sentido
da liberdade currada.
 
Os mercadores da guerra acreditam
que o amor odiado morre com a morte.
 
Mas o preço do ódio vendido
é ser vermelho o sangue dos negros...
– Livre, há de querer provar o quanto é forte!
 
CIRANDA cirandinha
vamos todos cirandar
nossa paz saiu de casa
mas um dia vai ficar...
ou foi dar uma voltinha
para nunca mais voltar...
 
Afonso Estebanez
(Prêmio “Troféu Casimiro de Abreu” do III Torneio Nacional da Poesia Falada de 1970 – Governo do Estado do Rio de Janeiro – Secretaria de Educação e Cultura – Departamento de Difusão Cultural. O poema foi cassado sob censura do Departamento de Ordem Política e Social (Polícia Federal) para apresentação pública pela Tv Globo durante a repressão do regime militar instalado no país em 1964, sob os veementes protestos de Cassiano Ricardo, então presidente da Comissão Julgadora do concurso, que nem assim conseguiu passar pela mordaça da censura federal)
CANTO DE ABRIÇÃO
(Folclórico de Folia Reis)
Tempo haverá em que
o canto ficará
completamente mudo.

A lágrima será como semente
da palavra salgada
que os olhos plantarão
entre os lábios...

Meu senhor dono da casa
escuta prest’atenção
vem abrir as vossas portas
pra esse nobre folião...

Devastarão casa por casa
cada palmo de chão será salgado
arrancarão todas as portas
e janelas dos sentidos
como o corpo num ritual
de sucessivos fluxos menstruais.

Sempre a história se repete
como a fábula inventada
por um rei que tem de tudo
e um povo que não tem nada...


Mas eu atirarei minha canção
no telhado da minha casa
e a chuva arrastará meus versos
pelas calhas esgotos e canais
e os desaguará em mar aberto
como barcos que despertam
na restinga da manhã...

As noites se perderão
para sempre de seus dias
mãos cheias virar-se-ão
sobre o chão das mãos vazias.

Transmitirei meu canto
boca a boca
como flor que germina
pelo olhar.

Espalharei meus barcos no vento
e minhas asas no mar...

No banquete solidário
da miséria consentida
só não morre quem não come
porque a fome é dividida...

Cada grito renascerá
no som do apito de fábrica
cada pranto reprimido
será chuva derramada.


 Meu pai se chama João Caco
minha mãe Caca Maria
juntando Caco com Caca
sou filho da cacaria...

De verde as folhas lavadas
nos arbustos das colinas
aos pingos encharcarão
as ramagens de resina...


A sobra que cai de cima
não se bebe nem se come...
Como água não mata a sede
como pão não mata a fome...

Nossa voz terá o calor da luz
no interior de uma choupana
na floresta.
A chuva correrá por claros vales
como fios de lã levados pelo vento.
Os pássaros imigrarão de seus mistérios
e as flores da manhã se regozijarão
como sinos diáfanos de luz
que não se ouvem senão com o coração...

Não quero toda a farinha
somente um pouco do pão
com que vossa mãe Maria
esposou meu pai João...


Os pés dos pequeninos pisarão lá fora
não como as botas que hoje pisam
a relva da esperança
fecundada pelo orvalho...
Eles terão o seu caminho certo
como as reses os sulcos dos campos.

Quem sobreviver verá
em passos desencontrados
o diabo passar no rastro
sob as cinzas dos reisados...

Todos entoaremos
uma canção que não se ouvia mais.
Os olhos verão coisas inacreditáveis...

E os homens se tornarão
mais unidos por amor
como irmãos num só rebanho
pela voz de um só Pastor!



Nosso ódio não tem mais ira.
Andamos de pés trocados
festejando os desmomentos
dos remates acabados...

Meu senhor dono da casa
escuta prest’atenção...
Vem abrir vossa loucura
pro meu canto sem razão.

Afonso Estebanez
CANTAGALO PRESS POEM

Minha sombra cativa do cipreste
dos teus muros e ruas – rei deposto
na torre desse exílio – que me reste
ao menos a lembrança do teu rosto...

Se regressar por lei me for imposto
aqui estarei rendido em solo agreste
senhor do resto apenas recomposto
da glória que meu canto te reveste.

Se uma esperança acaso derradeira
reclamar em minh’alma forasteira
o regaço materno que me estreitas...

Tua paz calará os meus protestos
e para sempre deitará meus restos
nesse vale de luz em que te deitas!

Afonso Estebanez
ARRAIAL DO CABO

O tempo que é minha hora não é hora de ninguém. 
Passo e fico como traços de meus passos a caminho
de Belém...

O vento cavalga nuvens desancoradas do mar
e o mirante contando barcos junto ao cabo do arraial 
à beira-mar... O vento vergando o dorso das casuarinas 
entre casas e colinas navegando no luar...

E na brisa o que se vai na brisa vem no cantar 
do mar-e-vento que é seu fado regressar. 
De Belém ressoam sinos na concha da madrugada...
O arraial me diz do amor sem que precise dizer nada, 
que trago n’alma profunda a calma desesperada...
Deixem-me aqui sepultado num coral de águas profundas
sob a areia movediça entre as algas derramadas...
E meus sonhos entre as dunas onde jaza bem mais funda 
a minh’alma apaixonada...

De tanto amor já viveram que de estrelas se fizeram tantas
horas de esperanças...Ai, quem me dera pudesse morrer 
de mar aberto de amor nesse arraial de lembranças...

Afonao Estebanez
(Poema dedicado ao poeta Luiz Fernando Prôa) 
ALGUMA ANGÚSTIA

Não suporto esse perfume
com lembrança de partida
e não suporto o queixume
desta angústia consentida.

Não suporto esses jamais
dos meus dias de finados
da memória de meus pais 
nos jardins abandonados.

Nem suporto esse destino
dos meus mares afogados 
num naufrágio vespertino
de sonhos não navegados.

Não suporto mais saudade
não suporto o nunca mais
nem suporto a eternidade
dos meus navios sem cais...

Afonso Estebanez 
ALGUMA SAUDADE

Feliz é quando a espera alcança
bonito é onde é o fim da espera
o sonho é quando há esperança
num bem que nunca desespera.

Saudade é a casa da lembrança
de um longo estado de quimera 
sonhar-te é andar como criança
no andar sem fim da primavera.

Amar-te é o quando de desejos
o enquanto matas-me de beijos
morrendo em mim tua vontade.

Feliz é o tanto com que te amo
malgrado tudo em meu outono
resta-me um pomo de saudade...

Afonso Estebanez
(Poema dedicado à encantadora 
amiga Stella Queiroz Lustosa) 
ALMA DE MENESTREL

Não deve morrer um dia
sem que a noite seja tua
nem meu sono sonharia
sem uma canção da lua...

Nem deve correr um rio
tão distante de seu leito
passa a noite vem o frio
eu distante de teu peito...

E nem te seja saudade
a saudade que me vem
por amor não há idade
pela idade que ele tem...

E vais tu levando a lua
pelas ruas do meu céu
com a alma quase nua
por teu doce menestrel...

Afonso Estebanez
UM SONHO ENTRE NÓS

Põe o sonho onde te ponho
ou deixa que o leve o vento
se não te restar mais sonho
faz sonhar teu pensamento.

Nenhum sonho vai embora
que não possa mais sonhar
como a insônia é a demora
que aguarda o sono voltar.

Como a noite é a memória
do amanhã que vai chegar
nenhum sonho tem a hora
para um sonho descansar.

Põe um sonho em tua vida
e a minha deixa sem nada
mas na estação da partida
não deixa a tua espalhada.

Não é bem que vás agora
com o teu jeito de sonhar
teu sonho quer ir embora 
mas o meu não quer ficar...

Afonso Estebanez
OFERENDA
Amor! eu te ofereço os meus pomares
e os cantares das aves que os habitam.
Eu fico com o inverno e esses lugares
com os cantares tristes dos que ficam.

Porque o mar e minh’alma coabitam
plantei romãs na orla de meus mares
e maçãs nos lugares que me excitam 
na manhã da esperança de chegares.

Amor! eu te ofereço o velho outono 
onde me tinhas descansando o sono
de nós dois ancorados na alvorada.

Onde a brisa fecunde o nosso amor
com a ternura em fúria de uma flor
que já não necessite de mais nada!

Afonso Estebanez
(Soneto dedicado a amiga especial
Telma Moreira com moradia cativa
nos pomares da minha poesia)