sexta-feira, 25 de novembro de 2016

ASTRONÁUTICA


No leito de lançamento
do teu corpo ao universo
ponho todo o sentimento 
do meu amor inconfesso,
e não me tragas respostas
para as falsas impressões
de tantas culpas impostas
por minhas contradições.


Por amor poetas mentem
quando falam de sua dor
e falando que não sentem
do que sentem por amor.



Peço só que tu me tragas
da alma cósmica de ti
uma das estrelas vagas
onde sempre me perdi.

Afonso Estebanez

A MAGIA DA EXPRESSÃO LITERÁRIA
OFICINA – MÓDULO 03
DA ARTE DE ESCREVER SEM MEDO
*UMA ATITUDE DA ALMA HUMANA*



RECAPITULAÇÃO – Ao tratarmos do assunto ‘conceitos de poema e poesia’ no módulo anterior (02), deixamos, propositalmente, infinitos horizontes abertos à penetração do pensamento analítico e reflexivo no universo desse fato cultural, na expectativa de que, a qualquer momento ou em algum lugar da história da arte literária, encontremos similaridade razoável entre os conceitos estéticos já firmados pelos estudiosos e os nossos conceitos próprios a respeito do assunto “poesia x poema” – e isto já seria de ‘bom tamanho’ para a espécie humana que, pesar do atual estágio da experiência evolutiva, ainda ignora, por escassez de maturidade e autoconhecimento, os mistérios da ‘transitividade do ser’ entre o mundo material e o universo infinito da espiritualidade. 

Até os dias de hoje tido como ‘dogma’, ‘enigma’, fenômeno’ ou ‘problema’, vimos que entre dicionaristas, filólogos, teóricos, professores, estudiosos, historiadores, filósofos, artistas, leitores, analistas, críticos, poetas, teatrólogos, antropólogos, dramaturgos ou teólogos, NINGUÉM, a despeito de infinitas tentativas produzidas ao longo da história da literatura, apresentou ao mundo conhecido uma definição de “POESIA” que fosse estética, filosófica ou cientificamente compatível com a universalidade de sua concepção ‘psicodualista’ (relação entre o mundo material e a alma humana). Limitou-se o homem a restringi-la a conceitos ‘psicomonistas’ (que negam a relação dualista entre o mundo material e a alma humana), suprimindo-lhe, com sentimento crítico pouco investigativo, a natureza da relação de razoabilidade, verossimilhança e proporcionalidade com o fenômeno singular da expressão poética preexistente no mundo espiritual dos indivíduos.    

Ninguém é obrigado a acolher o nosso entendimento aparentemente pouco pragmático. Mas temos por convicção que o mundo dualista da ‘poesia’ não se submete a nenhum princípio que tenha caráter de ‘definitividade’ literária. Nele, nada é ‘definitivo’ assim como soe acontecer com os princípios da matemática avançada ou da física quântica. Afirmamos, pois, com segurança, que POESIA É UMA ‘ATITUDE’ DA ALMA HUMANA, sem nunca perder de vista o que disse *Rainer Maria Rilke a propósito das criações artísticas resultantes desta ‘atitude’ da alma: parecem “SERES MISTERIOSOS CUJA VIDA IMPERECÍVEL ACOMPANHA NOSSA VIDA EFÊMERA” (in Cartas a Um Jovem Poeta). Merece também, aqui, toda a nossa reverência o douto ensinamento do festejado professor Pedro Lyra, que dimensionou, com notável singularidade, o conceito de ‘poesia’ para além de sua definição meramente abstrata, ao afirmar que ‘poesia’ é “A TRANSITIVIDADE DO SER”. Assim, como a ‘poesia’ é, por isso mesmo, o elemento imaterial gerador do ‘poema-fato-realidade-cultural’ e o ‘poema’ é a sua realização/afirmação no mundo material através do concurso da atividade humana atribuível àquele que está escrevendo com propósito artístico, convém que lhe dispensemos uma vestimenta conceitual objetiva e razoável bastante à sua necessária aproximação linguística do assim conceituado ‘poema-fato-realidade-cultural’.

Por conseguinte, doravante passamos a adotar, com sensível restrição embora, esta conceituação ‘pedagógica’ de “POESIA”: “Forma de expressão linguística em que se revela uma particular visão do mundo, apelando mais para a emoção do que para a inteligência, através de uma seleção vocabular essencialmente metafórica” (Antônio Houaiss, in ‘Pequeno Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse’, Editora Larousse do Brasil, 1987, Rio de Janeiro). Para que se devote fidelidade/lealdade linguística ao atributo da dualidade humana, substituam-se os termos ‘forma’ por ‘impulso’, ‘emoção’ por ‘sensibilidade’ e ‘inteligência’ por ‘conhecimento’. Interpretemos então este ‘conceito’ como uma ‘definição’ de conveniência e pacifiquemos o assunto, por enquanto.

ESCREVER POEMA – Retornemos rapidamente ao tema, para relevar o entendimento pacificador de que, ‘a princípio’, com base nas evidências da constatação empírica (baseada na experiência humana), um “POEMA” é, de modo mais ou menos consensual, um texto (ou forma de expressão de qualquer natureza com propósito estético) escrito (ou composto), não exclusiva nem necessariamente, em verso. Diante daquela cautelosa expressão ‘a princípio’, podemos afirmar com igual segurança que ‘poema’ é simplesmente a ‘arte de escrever em versos’, como querem os teóricos? Não! Há um mínimo de preceitos básicos a serem observados, sem os quais não poderemos alcançar o público leitor que lhe dará, ou não, reconhecimento e aprovação. Há o inevitável mergulho do pensamento reflexivo nas águas profundas do mundo interior. Há a necessidade imperiosa de passarmos pela experiência da solidão, em que ninguém pode – e nem tem o direito de – dar conselhos ao poeta, para quem só existe o caminho da penetração em si mesmo, à procura da necessidade de escrever e compor. Há que se ter a certeza de que a necessidade de escrever tem raízes nas profundezas do coração. 

Em poemática – como em qualquer outra dimensão artística – costuma-se adotar o princípio de que uma obra de arte só é boa quando nasce por necessidade, o que nos remete à crença de que a natureza de sua origem é que a julga. Por isso o expressivo, complexo e defensivo ‘a princípio’, que de algum modo deve interessar, desde logo, a quem se pretende iniciante na arte de ‘conceber’ (cogitar), ‘escrever’ (gerar) e ‘criar’ (dar à luz) poemas, SEM MEDO. 

ESCREVER SEM MEDO – O maior e mais temido adversário do indivíduo e, particularmente do iniciante em qualquer tipo de atividade humana nobre que – como a da arte – constrói templos à virtude e cava masmorras ao vício – é o “MEDO”. Medo do medo. Medo da transitividade do ser. Medo da culpa original. Medo da solidão decorrente do processo individual do autoconhecimento. Medo de examinar-se a fundo, até achar a mais profunda resposta. Medo do anonimato ou da obscuridade pessoal. Medo resultante da inibição educacional, da timidez social, da discriminação de qualquer espécie e de outros fatores históricos de exclusão do indivíduo do processo de autoafirmação sociocultural. Medo da predestinação.

Neste ponto, é fundamental que celebremos, desde logo e ‘tête-à-tête’ com o mundo da racionalidade, uma cerimônia de exorcismo do “MEDO DA CRÍTICA” , esta a mais intrigante e parasitária de todas as que – com raras exceções – infectam o ambiente da arte literária produzida em nosso país, uma nação tida lá fora – a despeito de tudo – como reserva privilegiada da poesia como fator de inclusão humana. EXORCIZEM-SE, PORTANTO, DE TODOS OS MEDOS, particularmente os medos da ‘crítica improdutiva’ que vem ‘de fora’, a crítica ‘posseira’, aquela que se arvora em ‘juíza de valores’ de nossas almas produtivas, estas antecipadamente demarcadas no mundo interior como moradas dos sonhos. Porque ‘sonhos são direitos fundamentais indisponíveis da alma humana’ (*Julis Calderón). Ninguém pode se apossar de nossos sonhos e nem deles podemos dispor. E é através da atividade linguística que nossas almas – seres em transitividade no mundo interior – têm por objetivo a arte em que procuram criar, com a linguagem própria e autoral, um estado psíquico de sensações estéticas por meio da aplicação sistemática de processos estilísticos em infinita evolução. 

Vejamos como o pensador brasileiro *Arthur da Távola – uma das personalidades mais cultas deste país – referia-se aos seres em ‘transitividade’: ‘A alma dos DIFERENTES é feita de uma luz além. Sua estrela tem moradas deslumbrantes que eles guardam para os poucos capazes de lhes sentir e entender. Nessas moradas estão tesouros da ternura humana dos quais só os diferentes são capazes’.

É através das manifestações da alma que ‘a língua transcende, neste caso da função essencial de meio de comunicação, para se tornar ela própria o objeto essencial da atividade e servir de matéria-prima para uma obra de arte literária. Essa aplicação artística de uma língua é espontânea e se encontra em todos os tipos de sociedades, mesmo as mais rudimentares, na sua vida material e espiritual. Como expressão linguística, um poema tende a organizar-se em frases ritmadas, com base na entonação, no número de sílabas, na distribuição mais ou menos regular, ou irregular, das sílabas acentuadas, constituindo-se desta maneira numa série de versos’ (Professora *Silvia Regina Pinto).

Desta maneira, uma das formas de o iniciante em arte literária lidar com o lado negativo da crítica ‘não autorizada’ é não esperar dela coisa nenhuma. E se lhe vierem versos do regresso ao próprio mundo interior, do mergulho da sua alma no cosmo infinito do espírito, não deve o iniciante indagar a ninguém se suas criações literárias são boas ou não (...), porque desfrutará delas como de uma posse natural, como de uma de suas formas de vida e expressão. 

“Leiam o menor número possível de trabalhos críticos ou estéticos. Estes, ou são produtos de um ‘espírito de partidarismo’, petrificados, privados de sentido na sua rigidez mortal, ou hábeis jogos verbais, inspirados numa opinião, agora e, no dia seguinte, em opinião contrária. Os trabalhos de arte são de uma solidão infinita: para os abordar, nada pior do que a crítica. Só o amor pode prendê-los, conservá-los, ser justo com eles. Dê sempre razão ao seu próprio sentimento, contra essas análises, resumos ou preâmbulos. Mesmo que se iluda, o desenvolvimento natural da sua vida interior conduzi-lo-á, aos poucos, com o tempo, a um outro estado de conhecimento. Deixe que os seus julgamentos tenham a sua evolução natural, silenciosa. Não se oponha a essa evolução que, como todo o aperfeiçoamento, deve vir do âmago do seu ser e não pode suportar coação nem pressa de espécie alguma. Levar a termo e dar à luz – eis tudo. É necessário deixar cada impressão, cada germe de sentimento, amadurecer em si, na treva, no inexprimível do inconsciente – essas regiões herméticas ao entendimento. Espere com humildade e paciência a alvorada de uma nova luz. Aos simples fiéis, a Arte exige tanto quanto aos criadores. (...). A primavera só chega para quem sabe esperar, tão sossegado como se estivesse esperando a eternidade” (*Rainer Maria Rilke). 
Nesse rumo, o segredo é aprender todos os dias, mesmo que à custa de enorme sofrimento. Escrever é viver em cio permanente. Manuel Bandeira gritava em profundo silêncio: ‘Quero antes o lirismo dos loucos... – Não quero mais saber do lirismo que não é libertação’. Cecília Meireles meditava e concluía: ‘Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta’. Irreverente aos assédios da crítica ociosa, Paulo Leminsky vibrava com alfinetadas de ironia: ‘Escrevo. E pronto. Escrevo porque preciso, preciso porque estou tonto. Ninguém tem nada com isso’. 
Para concluirmos, assim, essa questão de necessidade de estimular o iniciante a ‘Escrever Sem Medo’ num ambiente literário de competições desiguais, conflitos pessoais, adversidades e contradições éticas no enfrentamento do tabu imposto pela crítica maniqueísta, senhorial e personalista, retornemos à lição abalizada do eminente professor Dimas Macedo, docente da Universidade Federal do Ceará (já citado no módulo anterior), a propósito das evidências do motivo global que um poeta tem para escrever sem medo:
‘Aquele que serve de parâmetro ao atual estágio de regressão da cultura, até o limite da barbárie e da violência plural e indiscriminada, isto é, o modelo de produção do capitalismo financeiro, na sua fase superior de concentração de riquezas e de exclusão social, está a questionar os potenciais de indignação e de revolta que os poetas carregam em sua consciência’.

Quer-se dizer que, na criação da arte, a ‘atitude da alma’ como a ‘transitividade do ser’ são reações naturais da liberdade de expressão humana, não sendo razoável exigir-se dos iniciantes na arte literária a leitura dos 143 sonetos escritos por Shakespeare; nem o entendimento da polêmica diferença entre ‘novidade’ e ‘novo’; nem que saibam que os movimentos iconoclásticos dos anos 20 – como aparente rejeição ao receituário cartesiano da época – tinham como bandeira da arte revolucionária a desgastada cantoria do ‘não saber o que queriam, mas saber o que não queriam’; nem que apreciem como rótulo pedagógico o comportamento do Carlos Drummond de Andrade quando exigia que os jovens poetas lhe provassem conhecimento da arte de escrever com a apresentação de um soneto; nem pensarem que o Fernando Pessoa fora o único linguista no mundo a definir, com escandaloso equívoco, que ‘um poema é a expressão de idéias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso’; nem que saibam das razões filológicas, linguísticas e antropológicas pelas quais opomos resistência à lei inconstitucional que ‘castrou’, com uma simples canetada de regressão cultural, o venerado “trema” (¨) da língua portuguesa falada com singularidade no Brasil.  
  
*Rainer Maria Rilke nasceu em 1875, em Praga, na República Tcheca, então pertencente ao império austro-húngaro. Fez seus estudos nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Em 1894 fez sua primeira publicação, uma coleção de versos de amor, intitulados Vida e canções (Leben und Lieder). É considerado um dos mais importantes poetas modernos da literatura e língua alemã, por sua obra inovadora e seu incomparável estilo lírico. Poeta fundamental, voz de uma época em transição, uma das últimas do seu tempo, aquela que anunciou o "fim dos tempos modernos" (Romano Guardini) e, ao mesmo tempo, a primeira voz e o primeiro poeta dessa nova era que vivemos. Rilke possui uma obra original, marcada pelo tratamento da forma e pelas imagens inesperadas. Celebra a união transcendental do mundo e do homem, numa espécie de “espaço cósmico interior”. Sua poesia provocava a reflexão ‘existencialista’ e instigava os leitores a se defrontarem com questões próprias do desencantamento da primeira metade do século XX. Sua obra influenciou muitos autores e intelectuais em diversas partes do mundo.
*Sílvia Regina Pinto possui graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1970), graduação em Português Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1973), mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1995) e doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2000). Desde 1978 é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ], na área de Letras, com ênfase em Teoria da Literatura. Atualmente, sua pesquisa trabalha os seguintes temas: teoria da literatura, filosofia, literatura e ficção, em perspectivas contemporâneas.
*Arthur da Távola era o pseudônimo do poeta, pensador e jornalista Paulo Alberto Monteiro de Barros, ex-senador da República Federativa do Brasil. Nasceu no Rio de Janeiro em 1936. Foi deputado estadual e federal. Era presidente da Rádio Roquette Pinto, conhecida como 94FM, pertencente ao governo fluminense. Cassado pelo regime militar, viveu na Bolívia e no Chile, entre 1964 e 1968. De regresso ao país, passou a usar o conhecido pseudônimo de Arthur da Távola.
*Julis Calderón d’Estéfané o heter\õnimo pseudonímico monobiográfico do poeta fluminense Afonso Estebanez Stael, nascido em 30/10/1943 na região agreste do município de Cantagalo-RJ, é advogado, escritor, cronista, poeta, jornalista laico e verbete da “Enciclopédia de Literatura Brasileira” e do “Dicionário de Poetas Contemporâneos”. Cursou o ensino superior nas Faculdades de Direito e de Filosofia, Ciências e Letras da UFF em Niterói (65/70). Finalista nos 1º, 2º e 3º Torneios Nacionais da Poesia Falada patrocinado pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio de Janeiro (68/69/70). Vencedor do Primeiro Concurso Estadual de Poesia do Advogado Fluminense (87). Tem obras publicadas em livros, jornais e revistas. Venceu, em julho de 2007, o Primeiro Concurso de Literatura do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT- Rio), nas categorias de prosa e verso. Faz parte dos movimentos de inteligência literária de Poetas Del Mundo e Alma de Poeta.  É membro da Academia Brasileira de Poesia. Recebeu a Comenda de Cônsul de Poetas del Mundo para representar sua cidade natal, Cantagalo/RJ.

Afonso Estebanez