sexta-feira, 18 de novembro de 2016

AMOR SAPIENS
(Cena V)



... E no entanto, sei tudo de ti
como sei de teus segredos obscuros
revelados através da escura sombra
de teus amotinados pesadelos...
Com quem andas, com quem te perdes
com quem te encontras 
para te desencontrar...

Sei tudo de ti...
Como a luz do sol o sabe de sua flor
oculta em cada canto do jardim...

O meu amor contudo
é como o gamo assustado
que sempre procura o abrigo
nos bosques de teu ventre...
Ô, alcova que me aquece!

Vencido o imenso vale da noite,
emigrará nos claros raios da aurora
deixando a relva quente e macia
como lembrança de um sonho
que o tempo adormece...

Afonso Estebanez 
AMOR SAPIENS
(Cena IV)



Não é verdade o que te dizem
as palavras que eu te não disse.
O travesseiro que à noite dividimos
não guarda vestígios de meus sonhos emigrados.
Por trás de cada porta devassada de meu sono
há sempre outra ainda não ultrapassada
como horizontes sucessivos das manhãs
que o sol deixa intocadas... 

E tu me amas como tens amado
a todos os teus amores através de mim...
Então eu sou o cordeiro de tuas culpas,
remidas na ternura onde germinam as sementes
que meus impulsos desesperados derramam
nas veredas secretas de tuas pastagens
de amor comprometido...

Tu me acolhes em tuas entranhas
e eu me vejo renascer num pomar de romãs
onde o canteiro de teu sangue ameniza
com flores de antecipada primavera
o outono de meu sonho não cumprido...

Afonso Estebanez 
AMOR SAPIENS
(Cena III)



Vejo as flores se abrindo para o sol
e as sombras que as acolhem, nada mais.
E falo com as reses à beira do caminho
e converso com as árvores e o vento
que me respondem quando passo 
e os cumprimento... 

É por ti, mas não de ti
esse pressentimento de estar em mim
um pastor de sonhos que se realizam
na canção de um regato entre folhagens
na pequenina flor cativa de um abismo
ou no múltiplo instante da germinação
das orquídeas que ornam meu jardim...

O que levas de mim não está naquilo 
que tuas mãos alcançam!
E o que tuas mãos alcançam não está
na ânsia de alcançar...O que não levas 
de mim é o que está consubstanciado 
no incógnito perfume de uma sombra
ou no código não decifrado na memória 
da arrebentação da brisa nos canaviais
ou dos sonhos que de manhã 
já não te lembras mais... 

Afonso Estebanez 
AMOR SAPIENS
(Cena II)



Por mais que tentes abrir as janelas
de minha vida, não verás senão fragmentos
de antigas auroras no crepúsculo de mim...
Ou de estrelas cadentes que se removeram
da via-láctea de meu destino desdobrado
em direção a horizonte nenhum...

Tudo o que sabes de mim
é o que pensas que sabes de mim.
Se me tiras o que te não dou, tiras somente 
aquilo com que ficas. E o que tiras não é o amor 
que permanece como o eco sufocado
na garganta da montanha...

Não podes tirar-me esse amor andarilho
que vaga noite e dia no meu vasto coração.
Não podes tomá-lo de meu peito!
Eu sou parte da comunhão dos pássaros
que tu apenas sabes de algum tempo 
e nada mais...

Eu sou o reencontro
e sou o desencontro
e sou aonde vais...

Afonso Estebanez 
AMOR SAPIENS
(Cena I)



Sinto por ti 
o instinto selvagem dos rios 
que percorrem a orla dos campos 
e se perdem nas densas florestas
como reflexos do sexo no corpo.

Por mais que tu insistas
em desvendar o curso de minhas águas
jamais saberás onde cantam as nascentes
nem onde arrulham os seixos das fontes
nem onde as vertentes 
conversam com o vento...

Nunca saberás do meu concerto de flautas
nos bambuzais nem dos bailes nas ramagens
onde os pássaros inventam
a linguagem do amor...

Nem de onde vem nem para onde vai
a brisa que te afaga sem que te percebas 
cativa de uma paixão pressentida...
Mas te resta a memória perdida
entre as cinzas de uma flor... 

Afonso Estebanez 
ETERNIDADE COMPARTILHADA 



Quando eu for desta vida à eternidade
que o seja devagar sem nenhum medo
de estar indo e deixando uma saudade
de amores meus vividos em segredo...

Nessa viagem quero pôr meus braços
e os mais secretos ímpetos das mãos
em teu corpo tomando meus regaços
no abraço de dois seres quase irmãos.

Quero ir fecunda à minha vida nova
onde eu te encontre repentinamente,
onde os dias do amor que me renova
sejam meus dias férteis de semente.

Nosso êxtase será como o dos anjos
nosso encontro será num grito mudo
a proteção do amor é a dos arcanjos
e que o amor de Deus nos seja tudo!

Poema a quatro mãos de:
Sandra Almeida & Afonso Estebanez 
DOM QUIXOTE



Tantas paixões meu cavaleiro errante
triste figura andante em mim venceu...
De eterno amor por sua doce amante
bem mais que eternamente padeceu...

Deu expressão ao asno e ao rocinante.
Aos guerreiros do amor deu o apogeu.
Aos moinhos de vento o vago instante
da reinvenção do sonho que morreu...

Revi meu Dom Quixote de La Mancha...
O escudeiro... O cavalo e a augusta lança
contra os dragões do inferno sob o céu...

Quando uma simples chuva de verão
derreteu – qual num passe de ilusão – 
a minha Dulcinéia de papel...

Afonso Estebanez 
DELICATESSE



A gota de orvalho
soltou-se do galho:
a gota caída.

A gota de orvalho
caída nas águas:
a gota perdida.

A gota de orvalho
da tua presença
virou minha vida.

Afonso Estebanez 
DEVANEIOS DA INSÔNIA



O que faz eterno o instante 
em que você ressurge da noite
coroada a face de sorrisos
é o que me diz o amanhecer 
dos lírios de como já nasci 
de braços abertos.

Já falei a você das folhas que caíram
e do sofrimento levado pelo outono
deixado em cada sombra de seu rosto.

Já mostrei como do fruto renovado
o renascimento da vida é infinito
como o cio das cigarras é o destino
que se cumpre no silêncio da resina.

Você consome o canto e os sonhos 
e os mistérios a esmo desvendados
e deixa esse sinal de impenetrável 
ausência nas minhas mãos vazias...

Mas onde houver a paz dos rios 
tangidos pelos caminhos bebidos 
de minha boca, eu irei beirando
as margens inventariadas no rol 
dos padecimentos...

Só me resta esperar que esta noite
você volte a embalar com beijos
meu sono perdido...

Afonso Estebanez 
VERSOS LEVIANOS


Sou o teu rio de mágoas
De lua cheia me inundo
E morro nas águas rasas
De um oceano profundo.

Colho flores numerosas
Da pedra da minha vida
E sei das tolas mimosas
De alguma rosa suicida.

No escombro da poesia
Há ninhos e andorinhas
E o chão da erva esguia
Por onde nua caminhas.

No jardim de sepulturas
Há as juras que nem fiz
Dos afetos e as ternuras
Que me deixaram feliz.

Afonso Estebanez
CONFISSÃO



Feliz de mim quando tu vens
ao confessionário do meu coração
falar do amor que ainda me tens
onde perdestes tua própria alma
num labirinto de solidão...

Louvores ao amor que te absolve
e te devolve a paz e a luz e a calma
sempre que lhe dás a oportunidade
de reencontrar a tua alma...

Bem-aventuradas são as almas 
que confessam seu amor perdido
do qual nunca se perderam...

É preciso viver para perder-se
o quanto é necessário perder-se
para se encontrar na solidão... 

Bem-aventuradas as nossas almas 
separadas... Eis porque juntas, 
jamais se perderão...

Afonso Estebanez
(Dedicado à carinhosa amiga
Sandra Mello “Flor”)
PROCURA-SE UMA ROSA



A rosa de que preciso
é flor nativa de mim.
Eu quero a rosa precisa
princípio
meio e fim.

A rosa de que preciso,
não a rosa dos poetas...
Mas a rosa imponderável
dos loucos
e dos profetas.

A rosa de que preciso,
não das mãos dos jardineiros...
Quero a rosa padecida
das feridas
dos romeiros.

A rosa de que preciso
vem do olhar dos passarinhos.
A rosa para ser rosa
não precisa
dos espinhos.

Eu quero a rosa votiva
dos vitrais e reposteiros
entre preces conspirada
no conluio
dos mosteiros.

A rosa de que preciso
não é a rosa-dos-ventos...
Quero a rosa irresoluta
biruta 
dos cata-ventos...

A rosa de que preciso
vem de abismos e desertos
como a palavra perdida
reencontrada
em meus afetos.

Às vezes mais que loucura!
Às vezes mais que razão...
A rosa de que preciso
é amor
mais que paixão...

Afonso Estebanez 
CONFISSÃO DE PAI PARA FILHO


Abro a janela para o amanhã
e não há nisso um vestígio de esperança.
Aceito a imposição de um novo dia
enquanto aguardo a hora do pão fresco.


Vivo intensamente o nada de em seguida
como um centauro ultrapassando o mito.
O que faço não marca o acontecimento,
senão o fechamento nulíparolunar
das portas dos dias das horas do tempo.


Sento-me à mesa e repito com a fome
o golpe traiçoeiro da abastança.
Abro o jornal e devoro uma notícia
que custou um sangue anônimo qualquer.


Eu não quero ser cúmplice do mundo.
Vou ao trabalho ou não vou,
ponho a gravata ou não ponho.
Afinal eu sou o que não muda o curso 
de nada segundo a minha preferência.


Qualquer alternativa é uma imposição
do agora ilhado no tempo.
O passado foi e o futuro é na cozinha
onde a carne está sendo retalhada.



Enquanto isso, $uborno com produtos
importados a viciada alfândega do coração,
malgrado os impostos escorchantes
devidos à amável consciência...

Afonso  Estebanez
CANTIGA PARA LUÍSA M. A.



Tu podes trazer saudades
das estrelas de onde vens
das rosas que só tu sabes
do universo de teus bens.

São rosas de nosso amor
desse amor que já o tens
e o perfume de uma flor
do berçário de teus bens.

Uma estrela mensageira
via-luz de onde provéns.
Uma aurora medianeira
como fonte de teus bens. 

Fonte mística do ventre
cálido orvalho da brisa
e uma rosa para sempre
no amanhecer de Luísa.

Tu podes trazer saudade
da morada de onde vens
também toda a claridade 
da alvorada de teus bens.

Afonso Estebanez 
HÁBITO ADQUIRIDO



Meus dias têm o hábito
de caminhar pela alameda sem dar conta de mim.
Um hábito que as tardes me ensinaram generosamente.
Os bolsos cheios de nada e as mãos vazias de tudo...
De volta, o portão de casa entreabre os braços secos
e me convida para entrar...

E vem aquela sensação de que esqueci 
de me lembrar do que o dia indiferente não contou...
Retorno em busca da lembrança do sorriso de amizade,
do cântico de um pássaro, de um beijo que me deu a brisa...
E só então percebo que minhas mãos vadias
– não sabendo uma o que a outra anda fazendo – 
já me haviam tocado o coração secretamente
com o encanto que as idas e vindas pela vida
acabavam de me dar...

Entro afinal, e num cantinho da memória
um sorriso de criança acende a luz
da minha alma... 

Como se alguma flor esquecida
estivesse me estendendo a mão...
... a mão do aroma de rosas 
que ainda me acompanha...

Afonso Estebanez 
FLOR DA ALMA

Vem desse amor eterno de você
uma canção tangida pelo vento
uma flauta no som do pensamento
que ressoa na alma e não se vê...

Brisa da tarde nos florais do ipê
num cântico de beijos ao relento...
Um feitiço de amor à flor do tempo
que vem sem precisar dizer porquê...

Uma canção de ser tão docemente
percebida... Tão leve se pressente
que a gente nem precisa perceber...

Basta ao amor plural de sua vida
saber-se a alma eterna e resumida
na alma de uma flor no alvorecer...

Afonso Estebanez 
(Poema dedicado a amiga poeta

Geisa Gonzaga-DF)
NONA ROSA DO ORIENTE

Meu jardineiro não faz nada a mais
do que faz o inventor de sensações
de flores sob escombros medievais
dos jardins que viveram de ilusões.

Contenta-me que exalte dos banais
amores, um que os cios temporões
jamais deixam ficar como num cais
fica a memória extinta das paixões.

Meu jardineiro vê nos monastérios
refúgio para as rosas dos mistérios
onde nascem cativas de um jardim.

Então, em mandarim o amor revela
que entre todas a minha era aquela
que ainda faz amor dentro de mim!

Afonso Estebanez 
(16.11.2016)
WISKY COM LEMINSKI
O que adianta trocar de posição na cama
ou o autorretrato de Van Gogh na parede,
o Cosme à esquerda e à direita o Damião
se o peixe foi feito para o buraco da rede? 

O que adianta trocar de lado o travesseiro
se os medos da insônia me amam do outro lado?
O que adianta vedar os dois olhos da Gioconda
se a Madona ainda assim me espia
em qualquer lado onde me esconda?

O que adianta rezar se rezo sempre para o santo errado?
O que adianta estar aqui domingo como se fosse sábado?
Mais de mil vezes o raio-que-o-parta me partiu,
mais que isso, o diabo-que-o-carregue me levou
e os acabei mandado todos para a puta-que-pariu...

Já fui assaltado pelo bando de meus ímpetos
levei porrada de meu próprio anjo-da-guarda
malgrado o círio, a fé, a missa, a reza, a esmola
a comunhão e a santa palma...
O que adiantou manter a calma
se a solidão não me devolve a alma?...

Afonso Estebanez