domingo, 26 de outubro de 2008

AMOR (DE) LÍRIO


AMOR (DE) LÍRIO

Um suspiro solitário
à luz extinta do círio
ou gemido libertário
calado na flor do lírio.

É amor ou é martírio
padecer involuntário
ou é sonho de delírio
é o gozo do calvário.

É o céu e é o inferno
É o lado mais eterno
da loucura na razão...

É o cativo ou o liberto
o lado duplo do afeto
no abismo do coração...

A Estebanez

SONETO DA ESPERANÇA


SONETO DA ESPERANÇA

Há coisas que não cabem neste mundo.
No mundo há coisas que não pode haver.
Descabe o enigma de meu ser profundo
nas coisas que me invadem sem caber...

Há lágrimas de amor em que me inundo.
Há mágoas que me inundam sem poder.
Cabe em minh’alma grito tão mais fundo
que o pranto de quem chora sem querer...

Não conheço ninguém que tenha amado
sem martírio ou quem sabe transportado
toda a paixão do mundo numa cruz...

Mas se couber no mundo uma criança
pode o mundo caber numa esperança
como o final do túnel numa luz!

A. Estebanez

AMOR RENDIDO


AMOR RENDIDO

Ontem fiquei aturdido
com a tua despedida...
Era meu anjo perdido
num labirinto da vida.

Num instante refletido
deixei a alma partida
e a parte reencontrada
ficou em parte perdida...

A noite recém-nascida
nasceu do tempo vivido
vem aurora adormecida
no crepúsculo exaurido.

E minha alma dividida
entre céu e chão batido
transparece agradecida
pelo não compreendido.

E tu me entregas rendida
o que te entrego perdido
sabendo que minha vida
já te havia pertencido...

A. Estebanez

MIGRAÇÃO DE ROSAS


MIGRAÇÃO DE ROSAS

De onde emigraram as rosas
que brotaram nos teus seios
de onde vêm nestas auroras
derramando os teus anseios
sobre o corpo que a desoras
atrai-me o corpo sem freios?

E de onde és me digas onde
onde o olhar dos jardineiros
em qual luz o olhar esconde
os florais dos teus canteiros?

Se a brisa não me responde
onde os beijos passageiros...

De onde a alma tão sozinha
vem perdidamente em mim
perguntar se tu eras minha
quando eu fui amado assim...

De onde migraram as rosas
que plantas no meu jardim?

A. Estebanez

EPITÁFIOS


EPITÁFIO - I

Guardei banais segredos dos amores de criança
dos mistérios da infância ouvi apenas por tolice
contei parábolas de amor porque o próprio amor
predisse que na vida viveria só dessa lembrança
de reviver das cinzas de uma flor do apocalipse...

EPITÁFIO - II

E das águas correntes desse rio em minhas veias
de onde doce fluísse uma canção jamais ouvida...
Talvez de alguma fonte de desejos clandestinos
ou dos prazeres matutinos de profanas ladainhas
dos arcanjos decaídos de meus sonhos suicidas...

EPITÁFIO - III

Apraz-me então morrer dos místicos presságios
de quem padece lentamente da secreta liturgia
de reencontrar-me pelo acaso de um momento
em que a parte encantada de mim fosse a magia
desse feitiço de poder-me amar além do tempo...

EPITÁFIO - IV

E era tudo o que a alma não defesa pretendia...
E para muito além do que muito além de mim
onde jaz meu pássaro cantor de súbito abatido
concebido me fosse então morrer de desamor
se reviver de amor a mim não fora concebido...

A. Estebanez

EKLIPSIS


EKLIPSIS

No princípio era a luz
dos astros itinerantes...
E da luz se fez o amor
como fazem os amantes...

Dos arcanos da memória
meus instintos delirantes
gravitam à luz da aurora
como fazem os amantes...

Amores chegam refeitos
com a brisa dos mirantes
derramados sobre o leito
como fazem os amantes...

E sobre lençóis vermelhos
com desenhos excitantes
o amor se põe de joelhos
como fazem os amantes...

A minh’alma apaixonada
no infinito desse instante
refaz amor de emboscada
como fazem os amantes...

Que assim seja meu amor
feito eclipses penetrantes
como a luz fecunda a flor
como fazem os amantes...

A. Estebanez

SONETO À SOMBRA DE NIETZSCHE


SONETO À SOMBRA DE NIETZSCHE

Hoje não quero nada de ninguém!
Nem compaixão, nem flores, nada enfim...
Tudo se esquece ou é ilusão. Porém,
eu sei que Deus vai-se lembrar de mim.

Passa o amor e fica esse desdém
nas sombras fugidias do meu fim...
Ah, pássaros que emigram para além
do amor que é gêmeo, mas não é afim...

Não quero nada. Nada! Nem lembrança
nem presente ou promessa ou esperança
nem vago instante que pareça festa...

Quero apenas que Deus me dê a graça
de brindar em silêncio numa taça
a glória de viver do que me resta!

A. Estebanez

SINFOLIA DE BEIRA-CAMPO


SINFOLIA DE BEIRA-CAMPO

A casa do beira-campo
beira o rio dos Andradas
beija-flor beira o caminho
no beiral das alvoradas....

Eu venho como quem mora
num vão longínquo do tempo
de claras nuvens levadas
pelas pastagens do vento...

Eu quero ficar aqui
entre regatos perdidos
vagando em luzes e sombras
como sonhos esquecidos...

Aveluz de verdes liquens
no arrepio da folhagem
destes caminhos incertos
de minha incerta viagem...

O vento me traz de longe
a aragem de que preciso
para acompanhar as águas
em seu cantar indeciso...

Viajar noturnas rotas
entre estrelas repousadas
sobre as copas cintilantes
dos clarões das madrugadas...

Pastor de rios sem fim
entre orquídeas e açucenas
percorrendo claros vales
distante de minhas penas...

Entre noite e alvorecer
eu quero viver assim
como ave de bons presságios
que Deus faz cantar em mim

E o rio do beira-campo
beira a casa e as cercanias
beija-flor beira a alvorada
nos beirais das serranias...

A. Estebanez

AMOR PERJURO


AMOR PERJURO

Romper a jura da paixão que ainda vibra
calar o amor que pelo amor ainda suplica
é lacerar com um punhal, fibra por fibra,
o aflito coração que n’alma ainda se agita...

Infringir à inocência as dores da desdita
com as torpes injúrias da aleivosa intriga
é como amordaçar o amor que ainda grita
pela justiça de um perdão que me castiga...

Compassiva missão das almas pertencidas
a minha de encontrar entre aves foragidas
a que levou minha canção do entardecer...

Jamais, porém, vou destinar meu coração
às demandas do amor extinto sem perdão
malgrado o êxtase de amar sem padecer...

A. Estebanez

AMOR POR EVIDÊNCIA


AMOR POR EVIDÊNCIA


Haverei de encontrar por onde for
teus beijos numa ânfora de vinho!
E me haverás o colo enquanto flor
rendida num canteiro de carinho...


Amarei com ternura o teu jeitinho
de matar-se de amor só por amor
de meu corpo deitado no caminho
de teu corpo num pânico sem dor.


Serei o sonho desse amor remido
no destino de um pássaro banido
num cântico de gozo sem motivo.


E é tudo que suplica o meu amor:
que me tenhas no colo como flor
e desse amor seja teu ser cativo!


A. Estebanez

OS RIOS CORRIAM CALMOS


OS RIOS CORRIAM CALMOS

Além de sete colinas
setenta léguas além
ainda há risos na casa
e lá não mora ninguém...

Ouviam-se pés macios
deslizando no assoalho
leves folhas se roçando
cristalizadas de orvalho.

Minha mãe punha o café
com odor de flor selvagem
– seiva da lenha no fogo –
no cheiro doce da aragem.

Meu pai montava a cavalo
cintava o relho e partia
galopando pelos campos
como quem raiava o dia.

Parecia que seu canto
ditava o rumo do vento
e que as curvas do caminho
seguiam seu pensamento.

Era um domador de nuvens
nos umbrais das atalaias
um barqueiro de colinas
em verdes mares sem praias.

E os rios passavam lentos
em minhas tardes amenas
levando meus dias calmos
em suas águas serenas...

A. Estebanez

SONETO DA CIRCUNSTÂNCIA


SONETO DA CIRCUNSTÂNCIA

Algo que escutas entre o mar e o vento
algo que perdes entre a onda e a areia
um vago instante de algum pensamento
à luz que há entre a chama e a candeia.

Algo entre o aroma, a brisa e o relento
fios que urdidos entre a aranha e a teia
vibram em mim de um átimo do tempo
a chama desse amor que me incendeia.

Em minh’alma inda incólume à deriva
nem sei o que fazer do que ainda resta
de meus barcos de bruma sobre o mar...

Faças de mim a tua circunstância viva
e desses restos me celebras uma festa
e o que ainda resta é para eu te sonhar...

A. Estebanez

UMA ROSA NA MESA...


UMA ROSA NA MESA...

Não sei qual palavra murmura
no aroma de brisa que exala
o vulto noturno que mora
no sopro da voz que me fala.

Se quero escutar já não ouço,
etéreo contorno se apaga...
É chama de luz que me acalma
na palma da mão que me afaga.

Pressinto seus passos roçando
meus pés no silêncio da sala...
Respondo o que em vão me pergunta.
Pergunto, mas ele se cala...

Não pode ser pranto o que chora
nem pena o destino em que vaga,
se o pranto que chora é por mim
se é minha essa pena que paga.

E sopra e suspira e me abraça
e ri nos cristais com leveza...
Depois vai embora na brisa
deixando uma rosa na mesa!...

A. Estebanez

POEMA ESCRITO NO CHÃO


POEMA ESCRITO NO CHÃO
(ou soneto dos quinze anos)

Nos reveses desta vida
o amor não sofre senão
quando a alma é ferida
nos espinhos da paixão.

A desculpa concedida
no revés da ingratidão
arrefece a dor sofrida
no perfume do perdão.

Vê o vôo nas planuras
do orgulho nas alturas
que inebria o coração...

Deus que deu à alma das rosas o luzir das cores
também deu por abundância o perfume às flores
que rastejam pelo chão...

A. Estebanez

DO PARNASO PARA MEU PAI


DO PARNASO PARA MEU PAI

Ah, saudade daquele tempo se envelheço
como a cadeira de balanço ali esquecida
por meu pai com o qual ainda me pareço
nesse cismar de amor e sonho pela vida...

Quando menino ouvia com ditoso apreço
histórias que vovó contava envaidecida...
Hoje sei que mudei! Sentindo reconheço
que saudade parece ausência sem partida...

Cadeira de balanço! Ô, exílio de saudade!
Tu guardas no madeiro minha tenra idade
que os da família o rústico perfil se esvai...

Eu lembro o meu avô e a prole reunida
e pressinto embalar-me na cadeira antiga
o vulto complacente de meu velho pai...

A. Estebanez

DEUS GUARDA MINHA CANÇÃO


DEUS GUARDA MINHA CANÇÃO

Eu existo porque canto.
Nada sei, senão cantar...
Encanto por desencanto
ou canto para encantar.

Tenho a alma das violas
nas danças de desfastio
e beijos de castanholas
nas horas de meu estio...

É acalanto quando calo
como flauta sussurrada
no canto mudo do galo
que perdeu a alvorada...

É mudez do vasto espanto
de ver tanto amanhecer...
Não é mágoa nem é pranto
mas o encanto de nascer.

Eu trago memórias fartas
das almas dos bandolins
das guitarras e das harpas
dos corais dos querubins...

Não é magia nem fado
o louvor que me conduz
pelas veredas do prado
dos rebanhos de Jesus...

A. Estebanez

CÚMPLICES DA PAZ


CÚMPLICES DA PAZ

Feliz eu de ter parado
aquele último canhão...
O amor me ia do lado
e duas rosas na mão...

Feliz do amor que me trouxe
dos escombros da guerrilha...
Converteu-me o sal em doce
e meu charco em maravilha...

Feliz do quanto os espinhos
que extraíram de minh’alma
remarcaram meus caminhos
com sangue tinto de calma...

Feliz que enxergo de costas
para ver quem fui de agora...
E meus olhos têm respostas
como cúmplices da aurora...

Feliz eu de ter amado
se por tanto fui capaz
meu amor seja legado
ao sangue de sua paz...

A. Estebanez
(A Che Guevara – in memoriam)

MULHER - TRAJETO DA VIDA


MULHER - TRAJETO DA VIDA

A mulher é a partida
no início da chegada.
Faz o trajeto da vida
luzidia da alvorada...

É a fênix renascida
é a alma despertada
a parte reconhecida
da vida reencarnada...

É o amor é o juízo
é a dor do paraíso
a verdade da ilusão...

A mulher é o desejo
é o fruto e é o beijo
e a causa do perdão!

A. Estebanez

VEREDA DE ROSAS...


VEREDA DE ROSAS...

Só uma rosa púrpura me vem na aurora
dos tempos revividos na vereda em flor...
Na alameda de rosas dos jardins de agora
a rosa púrpura é invenção da luz do amor...

Que oportunos seriam todos os instantes
nos livres roseirais de púrpura dos anos
se ainda verdejasse a alma dos amantes
nos canteiros insípidos dos desenganos...

Que diria meu tempo às horas indecisas
do amor-perfeito já maduro do primeiro
o atento jardineiro às flores imprecisas
as sempre-vivas ao fascínio do canteiro...

Essas rosas vermelhas da paixão no cio
mergulhos de corais no seio da mulher...
E tudo o que me quer das rosas é tardio
meu lado triste de baldio bem-me-quer...

Acácia branca de jardins imperecíveis
Flor de lótus na luz das rosas orientais...
No azul etéreo desses seres intangíveis
leva-me a brisa no cantar dos roseirais...

Oh, doce rosa púrpura no ser profundo!
Dom da alma se sabe a ser e não se vê...
Toda rosa pode nascer rosa no mundo
mas só uma no mundo pode ser você!

A. Estebanez

AMOR & VINHO


AMOR & VINHO

Lábios rubros das deusas das colinas
esmeraldas dos deuses dos vinhedos
sonhos prenhes das almas femininas
nas taças naufragadas em segredos.

Nos arco-íris flutuantes do mar tinto
o espírito excitante de um barqueiro
ancora-me entre os cais do labirinto
de teu corpo faminto e companheiro.

O amor carrega o peso dos sentidos
derramados no som da água fluente
dos beijos embriagados de gemidos
das chamas da libido incandescente.

O vinho traz memória de arvoredos
entre os seios recurvos das colinas.
Do dia de uma noite sem os medos
de florescer o amor entre as ruínas.

Embriago-me de rosas sem motivo
assim como o perfume de uma flor
pois dos amores sóbrios só preciso
para embriagar a lucidez do amor!

Afonso Estebanez

PRIMEIRA CARTA ABERTA PARA JUAN E LÍDIA


PRIMEIRA CARTA ABERTA PARA JUAN E LÍDIA

Juan, aqui cheguei!
E já estou de partida...

Eu não sou de nenhum lugar
nem tenho para onde ir
nessa longa ronda cigana
pelas beiradas da vida...

Antes que o trem apite na estação
pela última vez na hora da partida
devo dizer que as cerejeiras já estão florindo.
O carvalho deitou as sombras no berço do caminho...
E os liquens nas pedras da ribeira, Lídia!... Tão verdes...
Como eram verdes os vales de minhas esperanças...
Os pássaros mineradores de pitangas tocam violino
com os arcos de sol que aquecem a cálida manhã...
A aragem acalanta os ramos das limeiras
e as abelhas deslizam pelos corrimões
de pétalas das castas magnólias...

Lídia, aquelas rosas floresceram no jardim
e canta um pássaro na calha da varanda
num recital gregoriano de versos
que ainda não compus...

A. Estebanez

SEGUNDA CARTA ABERTA PARA JUAN E LÍDIA


SEGUNDA CARTA ABERTA PARA JUAN E LÍDIA

Lídia!
Desnecessário lembrar que é primavera...
E que me amanheço debruçado na janela
(os olhos alongados para além do horizonte desse muro que me cerca)
a contentar-me com a placidez que me virá do outono
que este ano passou suavemente pelo inverno...
Malgrado esse pomar do qual lancei a corte
as fruteiras de tantos desenganos
(e poucos foram meus).

A vida me leva a alma como os ferros o expresso
sem parada obrigatória.
Não me é dado apear-me do cansaço
e respirar
e caminhar
e cantar como os suspiros das guitarras nos riachos...
E tomar na concha de minhas mãos mal ritmadas
uma rodada de água fresca e cristalina
e brindar a essa gente simples
que tem uma canção no olhar...
Ô, Lídia!...

A. Estebanez

TERCEIRA CARTA ABERTA PARA JUAN E LÍDIA

TERCEIRA CARTA ABERTA PARA JUAN E LÍDIA

Juan!
Nem da última ventana
do comboio que atravessa
lenta... lento... lentamente
a última fronteira do jardim,
a mim é dado o florescer
do cinamomo que plantei
aqui... E quando me vier,
hei-me partido!
Tenho somente a brisa por acaso
que de manhã me banha no terraço
e me cobre com beijos e abraços
docemente consentidos...

Veja, Lídia! Se me tenho algum sentido!
Uma gota de orvalho translúcida de luz
escorrendo na corola da papoula
e um beija-flor em êxtase no espaço
de alguma bailarina estática no ar..
.
Espero uma mensagem de Neruda
que aquele tempo prometeu-me a mim,
transcendente ao látego dos ventos
por correios que embora não correntes
deixassem-me uma rosa de salinas
no jardim...

A. Estebanez

QUARTA CARTA ABERTA PARA JUAN E LÍDIA

QUARTA CARTA
ABERTA PARA JUAN E LÍDIA

Ah, Juan! Por quem me dera
fosse a rosa me conclamando
a morrer-me em Araucanía...
Suposições ainda que meras
supostamente por um só dia
como o amor de um só verão
saber a madres de la culebra
nas estevas do rude coração...

Por quem me dera viver entre os bosques de Temuco
de alguns metros quadrados de raulíes e de saudade
a céu alado sobre lumas nas frondes dos copihues...
Eu tão tinto de vinho e sangue do suor da liberdade!

Lídia! Ô, Lídia! Essa casa eu nunca tive e esse chão
nunca foi meu e pátria jamais será!
Não é sonho que se compre,
é flor de la nacionalidad...
Chão e sangue, isso é pátria!
Isso é lida, isso é labuta...

Saudações, Juan!
Eu vou à luta!

A. Estebanez

BAILIA 2

BAILIA

Na angústia da insônia
eu me conto minha vida
e durmo de tédio...

A noite acomoda-se
à beira de um riacho
e as águas cantam para ela
uma canção remota...

É assim
que ainda me conto
a história
de minha vida
escrita nas estrelas...
A lua é o ponto
final...

A. Estebanez

BAILIA 1

BAILIA

O sol se põe
em seu corpo
e se trança
em seus cabelos
como arco-íris
derramado
em campos
dourados
de arroz...

Suas mãos
acenam-me
adeus...
Frágeis borboletas
entre os arabescos
dos movimentos
desatinados
nas mãos trêmulas
do vento...

A. Estebanez

CAMINHO DE CHÃO

CAMINHO DE CHÃO

Minha vida foi de pedra
meu caminho foi de chão
batido no leito seco
dos rios sem direção...

Não tive nenhum destino
nem o quis saber em vão
senão o rumo das pedras
do meu caminho de chão.

Fui timoneiro de nuvens
naveguei a solidão
nas pedras da calmaria
do meu caminho de chão...

Minha vida foi de pedra
meu caminho foi de chão
como sombra fugidia
da esperança sem razão.

Fui profeta de meus sonhos
sem nenhuma explicação
como uma esfinge de pedra
no meu caminho de chão.

Uma flor qualquer no vale
um som qualquer de canção
são restos de minha vida
no meu caminho de chão...

A. Estebanez

ALMA DE POETA

ALMA DE POETA

Exuma desse amor que a poesia
é dom da liberdade de um poeta
como a aurora na estrela luzidia
é dom do novo dia que desperta...

As almas dos poetas são magia
onde o ser infinito se completa
em orgasmos de paz ou agonia
feliz de reviver só do que resta...

Poeta não é presa dos sentidos
é o exílio dos pássaros banidos
de alma livre e cativa se quiser...

Só há um ser de amor e alma repleta
capaz de cativar a alma de um poeta:
é o ardente coração de uma mulher...

A. Estebanez

MINUETO

MINUETO

Levo todo o amor
do mundo no peito
e uma flor na mão...

E a dona de tudo
– da vida e da morte –
diz – “Não!”

Levo um desamor
profundo no peito
feito pedra em mim...

E a dona de tudo
– do sonho e da sorte –
diz – “Sim!”

A. Estebanez

MEESTRIA A LEONORA DE PROENÇA

MEESTRIA A LEONORA DE PROENÇA
(Cantiga de Amigo)

Um dia brisa no campo
um dia a asa no vento
enviei meu pensamento
ferido de desencanto...

Leonora, Leonora,
ess’amor assi non fora
qu’outro bem me fora tanto?

Uma vez brisa soprada
uma vez asa partida
minha ilusão tam velida
voará desencontrada...

Leonora, min tormenta!
Non torn’ess’amor qu’eu senta
em coita tam desamada...

Leonora, eu cuidaria
desse amor com tal desvelo
qu’outro bem pra merecê-lo
de ser mor que o meu teria.

Mays se vós visseis, Senhor,
com tal coita mia dor,
dess’amor vos morreria...

Quanto mais a dor doesse
mais esse amor veveria...

A. Estebanez

MEUS ANJOS FALAM

MEUS ANJOS FALAM

Quando meu anjo te fala
teu anjo fica em silencio.
Quando meu anjo se cala
teu anjo fala o que penso.

Quando teu anjo me fala
meu anjo fica em silencio.
Quando teu anjo se cala
meu anjo fala o que penso.

Tudo o que teu anjo fala
meu anjo fala em silêncio.
Cada anjo então se cala
para falar o que penso.

Tudo o que meu anjo fala
teu anjo fala em silêncio.
O anjo que então se cala
é o que fala o que penso.

Anjos são dois dialetos
de uma única linguagem
quando falam dos afetos
no silêncio da mensagem.

Eles são esses dois lados
das canções e seu cantor
que juntos falam calados:
Como te amo, meu amor!...

A. Estebanez

ALGUMA SAUDADE

ALGUMA SAUDADE

Feliz é quando a espera alcança
bonito é onde é o fim da espera
o sonho é quando há esperança
num bem que nunca desespera.

Saudade é a casa da lembrança
de um longo estado de quimera
sonhar-te é andar como criança
no andar sem fim da primavera.

Amar-te é o quando de desejos
o enquanto matas-me de beijos
morrendo em mim tua vontade.

Feliz é o tanto com que te amo
malgrado tudo em meu outono
resta-me um pomo de saudade...

A. Estebanez

ALMA PARTIDA

ALMA PARTIDA

Eu tenho a alma partida
por duendes da loucura
por causa da despedida
entre o amor e a ternura...

Loucura de amor jurado
pela jura não cumprida
do lado compromissado
da ternura prometida...

De súbito foi o instante
em que tudo se perdeu...
Mas era tempo bastante
de viver o que morreu...

E tudo o que era presente
foi tempo tão esquecido
que a ternura impaciente
não viveu o amor perdido...

E assim a alma partida
por duendes da loucura
ser causa da despedida
entre o amor e a ternura...

A. Estebanez

CANTAGALO PRESS POEM

CANTAGALO PRESS POEM

Minha sombra cativa do cipreste
dos teus muros e ruas – rei deposto
na torre desse exílio – que me reste
ao menos a lembrança do teu rosto...

Se regressar por lei me for imposto
aqui estarei rendido em solo agreste
senhor do resto apenas recomposto
da glória que meu canto te reveste.

Se uma esperança acaso derradeira
reclamar em minh’alma forasteira
o regaço materno que me estreitas...

Tua paz calará os meus protestos
e para sempre deitará meus restos
nesse vale de luz em que te deitas!

A. Estebanez

LEMBRANÇAS DO LUGAR

LEMBRANÇAS DO LUGAR

Querida, vê no pranto que extravasa
o coração quando a lembrança aflora...
Os gerânios... As rosas... Como atrasa
o tempo entre o crepúsculo e a aurora!

Há sonhos que ainda vagam pela casa
em meu rústico albergue da memória...
E ainda um lírio que a min’alma vaza
de saudade do amor que ainda chora...

Nos beirais da varanda as andorinhas
bailam, querida, e as ninfas seminuas
das ribeiras em flor bailam sozinhas...

Beirando a vida nos beirais das ruas,
tu vives de sentir saudades minhas
e eu morro de sentir saudades tuas...

A. Estebanez

A FÊNIX DE HIROSHIMA

A FÊNIX DE HIROSHIMA

Oh, flor do céu tão cândida e tão pura!
Ô, fênix dos escombros de Hiroshima!
Devolva o desamor à dor da sepultura
e ao seu algoz o horror dessa chacina!

A dor que dói da guerra é a dor futura
e a rosa que a dor lembra é a matutina
por quem dobram os sinos é a ternura:
a fênix dos escombros de Hiroshima!

Por quem dobram os sinos é candura:
a fênix dos escombros de Hiroshima!
A rosa ensangüentada estava impura
nos escombros da aurora vespertina!

Ah, flor do céu tão baça e tão escura!
Prenúncio dos crepúsculos em ruína!
Devolva a paz ao mundo com doçura:
a fênix dos escombros de Hiroshima!

A. Estebanez

ADÁGIO COM SENTIMENTO

ADÁGIO COM SENTIMENTO

Ah, os dedos entre as pétalas de rosas brancas
sentimento da alma em todo o amor do mundo
nas teclas de um piano as flautas doem tantas
quantas doem as mágoas de meu ser profundo.

Cantata ou fuga entre crepúsculos em quantas
semibreves de outono vai-me o amor fecundo
esse cantar de sonho com que tu me encantas
segundo o nunca mais de apenas um segundo.

O compassado amor – em dor menor – talvez
enquanto a noite for meu lume inda que tarde
o compensado amor – em dor maior – jamais!

Que toda aurora é o anoitecer de alguma vez
meu dia é essa canção composta de saudade
e minha noite quase sempre é um nunca mais...

A. Estebanez

O ÚLTIMO DIA DE TRABALHO DO PÔR-DO-SOL NO MAR

O ÚLTIMO DIA DE TRABALHO
DO PÔR-DO-SOL NO MAR
(OU DO PENOSO OFÍCIO DE SONHAR)

Havia o mar na sombra do horizonte
havia o pôr-do-sol na água sombria
havia o porto e a encosta do mirante
e os corpos dos amantes na mortalha
da água fria...

Havia as naus no dorso dos destinos
e a brisa que saudava a volta ao cais
com os corais dos cantos peregrinos
das harpas e violinos dos noturnos
vendavais...

Havia como um repousar do mundo
nos profundos jardins das enseadas
havia vasta ausência no mais fundo
das almas insepultas que sonhavam
acordadas...

Havia o céu de estrelas rutilantes
e havia o mar de ninfas reluzentes
e a corrente de espumas flutuantes
das errantes escunas entre luzes
fluorescentes...

Agora onde era o mar há o oceano
o poente sem sonhos naufragados...
Jaz agora no cais em ritmado sono
o pertencido amor dos navegantes
afogados...

Ainda há aves mortas no convés
e há naves ancoradas sem destino
o declínio de auroras dispersadas
pelas marés da saudade em pleno
desatino...

Ficou uma canção de marinheiro
e um canto rústico de pescadores
o pôr-do-sol no doloroso encanto
de renascer, sonhar, depois morrer
sem dores...

A. Estebanez

ONDE

ONDE

Em qualquer recanto onde existam rosas
qualquer rua escura em que a noite pare
e as palavras soem quase indecorosas...

Onde mais não haja do que só o instante
onde então me mate só de encantamento
ou talvez não morra e só me desencante...

Onde haja caminhos no chão de veredas
com estradas noturnas de pedras acesas
vaga-lumes vaguem pelas noites negras..

Onde o túnel d’alma nunca mais a habite
onde haja esperança que só tenha calma
e onde haja tristeza que não seja triste...

Onde os suicidas morram, só de alegria!
Como foi Totônia, como foi meu Felipe
como foi Margarida como foi a Maria...

Onde haja certeza quando vier a sorte
que não tarde o dia quando vier a noite
nem retarde a vida quando for a morte...

A. Estebanez

FLOR DA ALMA

FLOR DA ALMA

Vem desse amor eterno de você
uma canção tangida pelo vento
uma flauta no som do pensamento
que ressoa na alma e não se vê...

Brisa da tarde nos florais do ipê
num cântico de beijos ao relento...
Um feitiço de amor à flor do tempo
que vem sem precisar dizer porquê...

Uma canção de ser tão docemente
percebida... Tão leve se pressente
que a gente nem precisa perceber...

Basta ao amor plural de sua vida
saber-se a alma eterna e resumida
na alma de uma flor no alvorecer...

A.Estebanez

PRELÚDIO

PRELÚDIO

Mulher, não espantes essa abelha
que está zumbindo entre os fios
de teus cabelos ondulados!

Pode ser uma fada
tentando compor um prelúdio
nas cordas de um bandolim...

Observes as borboletas...

São harpas nas mãos das flores
que executam silenciosamente
a sinfonia da primavera
na ribalta do teu jardim...

A. Estebanez

PELO AMOR DE UMA MULHER

PELO AMOR DE UMA MULHER

Tolice minha não acreditar que um dia
amar-te novamente não me fora dado
pois se do teu amor o meu amor vivia
nem a morte teria o meu amor levado.

Ainda tenho no rosto a plácida alegria
da luz do meu amor na face renovado
como num sonho retornado da magia
do amor eterno que julgavas acabado.

Agora estou aqui de cinzas renascido
refém da íntima tortura de estar vivo
cativo desse sim enquanto dizes não.

Mas inda jaz o amor no fio do sentido
de tudo que liberta inda me faz cativo
assim como inda vivo do teu coração!

A. Estebanez

POEMA ESCRITO NA ÁGUA

POEMA ESCRITO NA ÁGUA

Minha mão volta a escrever
entre as páginas das águas
onde o amor me volte a ler
a história de suas lágrimas.

Que nunca me falte a tinta
para o branco da memória
que amor é mágoa distinta
da mágoa de toda história.

E entre as páginas viradas
que inundam meu coração
deixo mágoas derramadas
com sabor de uma canção.

Quantas delas já verteram
das águas todas passadas
e de espuma converteram
dor em flores restauradas.

Minha mão vem descrever
como faz a flor das águas
que reescreve o alvorecer
da vida isenta de mágoas.

A. Estebanez

MEU SER POETA

MEU SER POETA

Não pensei em ser poeta
mas a vida quis por mim:
planto lágrimas na pedra
e o que é dor vira jardim.

Não tão fácil é ser poeta
e tão fácil mesmo assim:
ser o princípio da guerra
pela paz que vem no fim.

Mas em terras de poeta
toda rosa é a alma afim
e em minha lida secreta
cada rosa é meu jardim.

Vou deixar de ser poeta
para ser meu querubim:
guardar na vida deserta
uma flor dentro de mim.

A. Estebanez

SONETO DO PERDÃO

SONETO DO PERDÃO

Perdoa-me por ter-te amado tanto
e a ponto de perder-me de paixão...
Perdoa-me ter padecido o quanto
mereceu padecer meu coração...

Perdoa-me ao menos por enquanto
até que em mim pereça essa ilusão
de morrer docemente pelo encanto
de viver sepultado em teu perdão...

Perdoa se te amei tão loucamente
com tanto amor e tão perdidamente
contente em desfazer o que não fiz...

Perdoa-me também e eternamente
pelo sonho que a vida te consente
e deixa-me pensar que fui feliz...

A. Estebanez

NUMEROSO AMOR

NUMEROSO AMOR

Ah, numeroso amor de que padeço
que me conta mistérios sobre mim...
Ô, enigma! princípio sem começo
destino que termina e não tem fim...

Amor que apraz e dói! amor avesso
que assim se exaure e se refaz assim
morrendo de viver por quem mereço
na volúpia de crer que é amor afim...

Flor de lótus de deuses consagrados
nos desígnios dos bem-aventurados
de alma pronta na vida já completa.

É deusa quem me dá o dom divino
de confirmar nas cartas do destino
o carisma do amor que me liberta...

A. Estebanez

DOER DE AMOR

DOER DE AMOR

Esse amor dói tanto
que me faz de fome
devorar meu pranto
que o doer consome.

Mas viver o encanto
de eu sonhar insone
me faz ver o quanto
é o doer sem nome.

O doer dos carinhos
prazer dos espinhos
das rosas sem dor...

O doer que convém
o doer que faz bem
ao doer-se de amor.


A. Estebanez

VÍCIO

VÍCIO

A beleza
era um ofício
daquela rosa
tão bela.
Que ser bela
é como vício
do ofício
da primavera...

Beleza tanta
era um vício
daquela mulher
tão bela.
Que ser bela
é como o ofício
do vício
da primavera...

Tua beleza
até parece
o início
da primavera
de ser bela
só por vício
do ofício
de ser tão bela...


Afonso Estebanez

AMOR AO VINHO DE ROSAS

AMOR AO VINHO DE ROSAS

Esta noite
tu me permitirás ajardinar teu corpo
nos mais esconsos roseirais de amor
em bosques sublimados no conforto
de aviar espinhos sem ferir-te a flor...

Esta noite
procriarei em teus fecundos ninhos
de aves marinhas de plantão no céu...
Ah, rosa ausente dos cruéis espinhos!
Vinho de rosas com sabor de mel...

Esta noite
tomar-te-ei o amor que me suaviza
a alma sem nenhum ressentimento...
Verei teu corpo com o olhar da brisa
e o tocarei só com as mãos do vento...

Mas esta noite
quero-te o gozo múltiplo e esvaído
como as últimas lágrimas sem dor...
Só a dor de um calvário consumido
no inexorável instante desse amor!

A. Estebanez

FOTO DE PERFIL

FOTO DE PERFIL

Quem me vê com a alma repousada
entre as cores manchadas desta foto
não sabe que ela é resto de alvorada
desmaiada entre as barras do ignoto.

O que vê são as sombras do remoto
porvir de alguma aurora desenhada
na areia do crepúsculo onde aporto
a foto que o amor deixou marcada.

Foi-me o tempo e levou a mocidade
das minhas rosas só deixou saudade
só espinhos me restam de uma flor...

Nem de sonho vivido já me lembro...
Só das saudosas tardes de setembro
como memórias póstumas do amor...

A. Estebanez