quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

EU SEI QUANDO TU VENS


Não preciso sondar os pensamentos
nem consultar meu vasto coração
para saber os dias e os momentos
em que me vens trazer consolação...

A mim me basta olhar pela janela
e abraçar a manhã no meu jardim
pois sei que a claridade que vem dela
é a luz do teu amor dentro de mim...

Deixo a brisa tocar a minha face
ouço as aves que vêm me visitar
e sei de cada rosa que renasce
o teu instante eterno de chegar...

Converso com o vento no telhado
onde o tempo costuma te esperar
de um futuro presente antecipado
por anjos que me vêm te anunciar...

No canteiro de beijos e jacintos
o odor suave de uma flor qualquer
inflama de desejos meus instintos
famintos de teu corpo de mulher...

Então eu sempre sei quando tu vens
sem que precises avisar-me quando...
O amor proclama quando tu me tens
e me prepara quando estás chegando.

Afonso Estebanez 

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

LEMBRANÇAS DE PAQUETÁ


Paquetá! – aqui estou de face revelada
ao fado de rever-te se ora me destinas
tua história de amor e glória recontada
no diário natural de tuas obras-primas.

Tenho saudade da saudade antecipada
que já sentia da canção das casuarinas
ao desmaiar no alvor da lua repousada
a luz do dia à flor das águas cristalinas.

Paquetá! – infinita luz entre dez milhas
de auroras e crepúsculos tintos de mel
de flor de flamboyant e banhos de luar.

Esmeralda pendente do colar das ilhas,
parte de um paraíso que restou do céu
d’algum éden celeste que caiu no mar.

Afonso Estebanez 

domingo, 11 de dezembro de 2016

PASTOREIO I

Depois que aqui for deixado
e todos tiverem ido
vou ser vento libertado
pelas mãos dos desvalidos
espalhando flor e pólen
no solo fertilizado
com o pranto dos oprimidos.

Vou soltar as estribeiras
cavalgar nuvens em pêlo
e aboiar as corredeiras
de meus rios represados.
Vou montar a liberdade
fingida das carpideiras
na pena dos condenados.

Sob os lábios comprimidos
dente por dente calado
olho por olho cerrado
na masmorra dos sentidos.
Vou virar redemoinhos
e girar pelos caminhos
como pássaros banidos.

Meus sonhos pagens de ninfas
luzes sombras sobre os lagos
prado em flor de claras tintas
e mistérios desvendados.
Vou apascentar meus mortos
na paz de ovelhas famintas
entre lobos saciados.


Afonso Estebanez Stael
PASTOREIO II
A viagem de tua alma
terá como roteiro
minha alma de menino.
Teus pés caminharão
pelos meus pés descalços
sobre os liquens e seixos
dos leitos dos riachos.
Raios de sol surgirão da campina
como pássaros das águas de coral.
Suas asas de luz vibrarão na manhã
como brisa entreabrindo janelas
esparsas nas sombras fugidias...
Percorreremos os rumos serenos
das águas fluentes e amenas
das fontes brotadas na relva
como flautas tocadas a esmo...
Abandonaremos por vezes o curso
dos rios e navegaremos o campo
como barcos de nuvens embriagadas
de ventos repentinos.
Iremos para além de onde
nada mais exista
qual pensamento obstinado
num gozo sem motivo.
Reconheceremos rostos amigos
lembrar-nos-emos de coisas esquecidas
e nossos olhos se tocarão num sorriso
sem sofrimento como plácidas mãos 
que compartilham pão e vinho 
num velho convívio,,,

Afonso Estebanez Stael

PASTOREIO III

Não é apenas sua voz que apascenta
meus dispersos rebanhos de sentidos
e faz correr dentro de mim as águas
das ribeiras com sorrisos flutuantes
de um concerto de flautas e flautins...
É também sua face voltada para onde
e como a flor se inclina ao ser tocada
pelas mãos da manhã em seu jardim...
Nem são apenas as veredas alunadas 
por seu destino de amada passageira
que fazem de mim pastor de sonhos...
São todos os caminhos contornados
pelos rebanhos de suas esperanças
reencontradas entre vales e colinas
e nos bosques tingidos de alfazema
para repousar a lembrança da volta...
Ah, os anjos desenhados no espaço
de seu corpo e os risos precursores
das palavras que nunca foram ditas...
É esperança que só o adeus revela
quando o seu coração agita a alma
para alcançar os sonhos fugidios...
Pássaro liberto pelas mãos da vida
borboleta com sua dimensão exata
desse perder-se sem ficar perdida...
Afonso Estebanez Stael
PASTOREIO IV

Eu preciso apascentar os teus cabelos
e beijar com os lábios da brisa tua face
eu preciso iluminar o lado oculto da lua 
de teu corpo e denunciar a descoberta 
do mais fértil planeta do teu coração...

Edificar com a lua teu quarto de dormir
entre rosas e gérberas sobre o teu leito
de amanhecer com as canções do mar..

E vou permitir que a luz do sol se deite
como aurora cansada de amanhecer... 

E, finalmente, vou esquecer de sonhar
que você foi o meu bom-dia prometido
como uma orquídea na beira do jardim 
que foi cúmplice de meu sonho casual
despertado neste cafezinho da manhã
de nossa vida...

E nunca mais tu me dirás um até logo,
nem quando necessária a despedida...

Afonso Estebanez
A MAGIA DA EXPRESSÃO LITERÁRIA
OFICINA – MÓDULO 08
DA ARTE DE ESCREVER COM ESTILO
*UM ATRIBUTO DA INDIVIDUALIDADE HUMANA*


“O MITO DA CAVERNA”. Todos conhecemos a parábola “O Mito da Caverna”, também chamada de “Alegoria da Caverna”, escrita por Platão (428-347), encontradiça na obra intitulada “A República” (Livro VII), de autoria do filósofo grego. Trata-se da exemplificação de como podemos nos libertar da condição de escuridão que nos aprisiona ao nos impedir de alcançar a luz da verdade. Pode ser uma exemplificação de COMO PODEMOS SUPERAR O MEDO DE ESCREVER, cujo destino é o alcance da libertação ATRAVÉS DA ATITUDE DA ALMA HUMANA.

Segundo relato de Platão, havia uma caverna separada do mundo exterior por um muro enorme, mas que continha uma pequena passagem que permitia a entrada da luz exterior. Seres humanos viviam ali como prisioneiros desde o nascimento, geração após geração, acorrentados e forçados a enxergar apenas a parede do fundo da caverna, sem que jamais tivessem visto o mundo exterior NEM A LUZ DO SOL. Uma réstia da luz externa, que passava pelo orifício do muro, iluminava o espaço habitado pelos prisioneiros, fazendo com que as coisas que se passavam no mundo exterior fossem projetadas como sombras na parede. Os habitantes da caverna JULGAVAM QUE AS SOMBRAS FOSSEM A MAIS PURA VERDADE. Certo dia, um dos prisioneiros resolveu empreender fuga da caverna, fabricando um instrumento com o qual quebrou os grilhões e escalou o muro, numa ATITUDE pessoal de muita coragem. Saiu da caverna e, no primeiro instante, ficou totalmente cego pela luminosidade da luz do sol, com a qual seus olhos não estavam acostumados, mas pouco a pouco se habituaram à luz, através da qual começaram a VER O MUNDO como ele era. O prisioneiro ficou ESPANTADO e, ao mesmo tempo, CHOCADO de ver as PRÓPRIAS COISAS, descobrindo que em sua prisão via apenas SOMBRAS e REFLEXOS. Desejou ficar longe da caverna, mas resolveu voltar para LIBERTAR os outros, avisando-lhes sobre o verdadeiro mundo. E, mesmo assim, foi desacreditado pelos demais que, incrédulos, preferiram manter suas idéias anteriores.

CONCLUI-SE QUE: é muito mais cômodo para nós apenas receber e aceitar tudo o que nos é mostrado como se fosse realmente verdade. Com isso, passamos a ter ideias errôneas e a formar opiniões distorcidas ou equivocadas sobre a maioria das coisas e fatos que cercam nossas vidas, sem que percebamos que estamos sendo manipulados para enxergar um mundo diferente do real. Ao aceitarmos essa condição, perdemos a oportunidade de conhecer a LIBERDADE, e o único jeito de alcançá-la é buscando a VERDADE dentro de nós mesmos, através de uma MANIFESTAÇÃO DE VONTADE COMPATÍVEL COM A ATITUDE DA ALMA HUMANA, uma atitude que nos liberte das influências que aceitamos sofrer, assim como o prisioneiro das trevas do mito de Platão: sendo capazes de acreditar que muitas vezes esse livramento está dentro de nós mesmos.

Assim, a “ARTE DE ESCREVER COM ESTILO” seria um atributo da individualidade humana, uma regra geral de libertação de uma visão estética da vida, segundo o processo natural do conhecimento humano. Mas a “ARTE DE ESCREVER COM ESTILO PESSOAL PRÓPRIO”, isto é – definitivamente – uma regra individual de libertação de uma visão estética da vida, através da expressão linguística peculiar a cada um. Neste contexto, a “POESIA” que existe dentro de cada um de nós se manifesta apenas como reflexo interior da luz, tal como no ‘mito platônico da caverna’. Mas se a poesia se liberta através da “ATITUDE” do poeta, assume a forma de “POEMA” e reassume a sua condição de expressão da verdade objetiva do mundo exterior. Seja como for, todo autor traz na escrita um “ESTILO”. Pode não ser definido ‘tão logo’ como ‘estilo pessoal próprio’, posto que é uma ‘experiência de libertação’ da individualidade. Mas é um ‘estilo’, um ‘produto da verdade’ do ponto de vista da materialidade da obra.

Neste passo, não há obra de arte desprovida de estilo. Conseqüentemente, todo poema tem um estilo. Quanto à sua identificação, espécie, qualificação ou quantificação no mundo artístico, não é matéria de que nos ocuparemos. De tais particularidades, ocupa-se a estilística. Infinito é o número dos autores que, no curso da história da cultura humana, entregaram-se aos estudos sistemáticos e analíticos de questão tão controvertida, a envolver retórica, poética, arte, ciência, literatura, epistemologia, justiça, virtude, política, educação, filosofia e militarismo, desde a Academia de Atenas (388 a. C.) com Platão, Sócrates e Aristóteles, até os dias de hoje, época em que a visão dominante de “ESTILO”, na linguística do séc. XX, pode ser descrita, segundo Birch (1998, p. 995), como “[...] a soma das características linguísticas que distinguem um texto de outro. E o que identifica a ‘ESTILÍSTICA’ como disciplina preocupada com a teoria e análise do estilo são motivações teóricas e metodológicas diferentes, que determinam quais características linguísticas em um determinado texto são adequadas para análise e quais não são. É uma estilística preocupada com a variação no uso da linguagem, ou seja, com a escolha analítica de seus termos (…)”.

Hoje, portanto, o termo ‘ESTILO’ passou a evocar, não mais o instrumento de ferro pontudo nas mãos de um velho sábio grego ou romano – o estilete – com que escrevia ele em tábuas enceradas. Estilo, na era moderna, passou a evocar o PRÓPRIO ESCRITO. Tem sentido figurado ou metafórico. De PRODUTO, passou a CONCEPÇÃO, a uma FEIÇÃO ESPECIAL. E apresenta-se nos mais diversificados usos: ‘estilo arquitetônico’, ‘estilo oratório’, ‘dança estilizada’, ‘dançarino sem estilo’, ‘estilo livre’, ‘estilo acadêmico’, ‘estilo apocalíptico’, ‘estilo asiático’, ‘estilo de jogo’, ‘estilo de borda’, ‘estilo de linha’, ‘estilo de tipos’, ‘estilo didático’, ‘estilo epistolar’, ‘estilo familiar’, ‘estilo clássico’, ‘estilo forense’, ‘estilo nobre’, ‘estilo vulgar’, ‘estilo ‘rebuscado’, ‘estilo rococó’, ‘estilo vicioso’, ‘estilo temperado’. Mas também é “ESTILO LITERÁRIO”: CARÁTER de uma produção artística de certa época ou certo povo, uma MANEIRA ESPECIAL de exprimir os pensamentos, falando ou escrevendo, uma HABILIDADE DISTINTA de compor, de pintar ou de esculpir de cada um.

Cada autor, por isso mesmo, ESTETA ou NÃO, impõe, no conteúdo de sua obra, algo de si próprio. Essa MANEIRA PESSOAL de expressão perceptiva ou imaginativa do autor é o ESTILO. É o que permite seja a obra sentida mais sensual, mais plástica, mais romântica, mais lírica, mais espiritualista. Não deve o estilo, entretanto, ser inteiramente livre, a ponto de submeter a obra artística a uma conceituação crítica que a classifique como produto de mera leviandade literária ou de anarquia linguística.  De um modo ou de outro, o estilo está condicionado a determinados fatores, para que seja inteligível e passe à posteridade mediante a aprovação do leitor e o reconhecimento público.

Portanto, na composição de um texto com propósito literário, devem ser observadas, em nome da arte de escrever, as QUALIDADES DE ESTILO, consubstanciadas – segundo orientação do já citado professor José Oiticica in Manual de Estilo – na ‘CORREÇÃO’, ‘CONCISÃO’, ‘CLAREZA’, ‘HARMONIA’, ‘ORIGINALIDADE’ e ‘VIGOR’ da linguagem literária – o que envolve precedentes estilísticos artisticamente privilegiados como: FORMA (materialidade de expressão), TEMA (motivo e núcleo ideativo) e RITMO (metrificação, cadência e musicalidade). Entre outros, estes assuntos serão objeto de nossos próximos módulos.

 Sobre a matéria em destaque neste módulo (08), porém, queremos destacar aqui a observação abalizada do notável escritor e artista visual catarinense *Tchello d'Barros, que advertiu durante entrevista concedida no XVI Congresso Brasileiro de Poesia, realizado em 2008 no palco cultural de Bento Gonçalves/RS: “Alguns teóricos são radicais ao dizer que não existe poema sem  o chamado ritmo. Seria o ritmo a base fundamental do poema. A metrificação é uma decorrência do ritmo. Aliás alguns defendem que deve  haver algum tipo de métrica mesmo em versos livres. Já outros, dizem que o  tema é a coisa mais importante a se considerar num texto que se pretende  ser um poema. *James Joyce privilegiou o estilo e a linguagem.  *Jorge Luis Borges apostava nas metáforas. Alguns puristas defendem a forma  - as formas fixas - como base segura para se escrever um poema. Penso que estes são alguns dos elementos com os quais o poeta deve lidar.  O mais importante talvez seja a possibilidade de alguém conseguir no meio  disso tudo encontrar sua voz pessoal, seu estilo único (...)”, numa “escrita peculiar e autoral” (asteriscos nossos).

*Tchello d'Barros (Brunópolis/SC, 1967) é escritor, artista visual e viajante. Residiu em 12 cidades, sendo 15 anos em Blumenau/SC, onde iniciou a carreira artística. Percorreu 20 países em constantes pesquisas na área cultural e desde 2004 está radicado em Maceió/AL, onde produz obras em desenho, pintura, infogravura, fotografia, instalação e poesia visual. Publica textos regularmente em jornais, revistas, sites e eventualmente ministra palestras, oficinas literárias e cursos de desenho.

*James Augustine Aloysius Joyce (Dublin, 2 de Fevereiro de 1882Zurique, Suíça, 13 de Janeiro de 1941) foi um escritor irlandês expatriado. É amplamente considerado um dos autores de maior relevância do século XX. Suas obras mais conhecidas são o volume de contos Dublinenses (1914) e os romances Retrato do Artista Quando Jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939) - o que se poderia considerar um "cânone joyceano".
 *Jorge Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de Agosto de 1899Genebra, 14 de Junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico e ensaísta argentino mundialmente conhecido por seus contos e histórias curtas. Ele nasceu, depois de morrer, porque ele viu, que seu sonho era próspero. E nunca mais voltou.


Afonso Estebanez

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

O POETA E A FLOR


Sinto-me, por mim e por ti, 
estar orbitando um planeta 
com minha única verdade: 
o amor! - diz o poeta à sua flor.

Tu sentes, por ti e por mim,
estar orbitando um planeta 
com tua única verdade: a flor!
- ao seu poeta diz o amor.

Mais do que pressentimento
é meu sentir-te dentro de mim,
é o teu sentir-me dentro de ti!
- diz-me a alma ao teu jardim.

Então és meu consentimento
para sonhar-me com teu amor
sem plantar-te o padecimento
do crepúsculo de minha flor !

Afonso Estebanez 

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

SONETO À SOMBRA DE NIETZSCHE 


Hoje não quero nada de ninguém!
Nem compaixão, nem flores, nada enfim...
Tudo se esquece ou é ilusão. Porém,
eu sei que Deus vai-se lembrar de mim.

Passa o amor e fica esse desdém
nas sombras fugidias do meu fim...
Ah, pássaros que emigram para além
do amor que é gêmeo, mas não é afim...

Não quero nada. Nada! Nem lembrança
nem presente ou promessa ou esperança
nem vago instante que pareça festa...

Quero apenas que Deus me dê a graça
de brindar em silêncio numa taça
a glória de viver do que me resta!

Afonso Estebanez 

UM SONETO 
PARA AUGUSTO DOS ANJOS


Ser ou não ser é a questão da vida 
que a espécie fratricida desvendou
gerando a flor do bem numa ferida
que a gênese do mal jamais curou.

Quanta pena de mim chora fingida
como se fosse pranto o que penou. 
Mas é somente a dor compadecida
penando pela dor que não causou.

A luz que me acendia agora apaga
a mão que me feria inda me afaga
amor de bem-querer não é paixão.

Meu ser ainda é o lobo de meu ser
pela pátria não posso mais morrer
o amor, enterrem no meu coração.

Afonso Estebanez
BEM-AVENTURADO


Ah! bem-aventurado o amor mesmo finito. 
Ah! bem-aventurado esse infinito instante
da eternidade efêmera desse inconstante
amor eterno entre os instantes do infinito.

Ah! bem-aventurado o desditoso amante. 
Oh! bem-aventurado o coração proscrito
Ô! todo o amor cativo sem a paz do grito
que entoe no infinito seu amor constante.

Ah! bem-aventurado esse pastor de rios.
Ah! bem-aventurado o som dos calafrios
do amor baldio tantas noites indormidas.

Ah! bem-aventurado o pobre de ventura.
Porque ele alcançará no vale da ternura
o amor edênico das deusas pertencidas.

Afonso Estebanez
A MAGIA DA EXPRESSÃO LITERÁRIA
OFICINA – MÓDULO 07
DA ARTE DE ESCREVER SEM MEDO
*UMA FORMA POÉTICA DE VER A VIDA*


“FORMA poética de ver a vida” é um texto de grande utilidade cultural, postado em 02/07/2009 por Kelly de Souza – exuberante analista da arte literária – no amplamente conhecido Blog da Cultura. Apresentamos o referido texto integralmente, pois nele o talento de Kelly de Souza nos parece um feliz resumo da matéria focada no módulo anterior. Uma forma poética de ver a vida é tudo o que estamos tentando incutir na mente dos que ousam fazer poemas, numa ATITUDE DA ALMA SEM MEDO dos mitos e tabus das regras técnicas petrificadas ou de quaisquer outros bloqueios culturais inadequados à arte contemporânea. Senão, vejamos:

“VOCÊS já devem ter ouvido: ‘Batatinha quando nasce espalha rama pelo chão’ (sim, essa é a forma correta, e não ‘esparrama pelo chão’). Esse verso, ungido pelo dito popular, que ouvimos e aprendemos desde a mais tenra infância, talvez tenha sido para muitos o primeiro contato com a poesia. E para alguns, como eu, ela, poesia, nunca mais se afastou.

AO LONGO da vida a poesia sempre nos acompanha. Está presente nos livros, na fala, em nosso discurso formal, em nossos relacionamentos amorosos, em nossos momentos de tristeza, de alegria e até em nossas explicações existenciais. A poesia esteve em nossos diários de adolescência, nos cadernos da faculdade, nas cartas, e-mails, fotos e até em nossas esperanças sobre a eternização da humanidade. Ela também está nas canções que nos acompanham ao longo do tempo, está nas artes plásticas, na arquitetura, na flora, na fauna, na natureza morta, na viva, no sorriso da criança ou no lamento dos oprimidos e aflitos. A forma poética, para muitos, é quase uma forma natural, orgânica, um símbolo de expressão, de diálogo e de comunicação com o outro. Todos os dias fazemos uso dela, com mais ou menos intensidade e inspiração.

OCTAVIO PAZ dizia que “o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e as métricas e rimas são apenas correspondências, ecos da harmonia universal”. Para ele, o poema é mistério, ao mesmo tempo que é fusão de tudo com tudo. “Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ele ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tenha nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana”.

PARA ARISTÓTELES, a poesia está mais compartimentada: “nada há de comum, exceto a métrica, entre Homero e Empédocles; e por isso, com justiça, se chama de poeta o primeiro e de filósofo o segundo”. É claro que é no poema que a poesia melhor se acolhe, melhor se ilustra, instala-se e se torna plena. O poema não é apenas uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o ser humano. O poema é um organismo verbal, uma ideia sensitiva que contém, que desperta e que emite poesia.

E O QUE SERIA O VERSO? É a unidade rítmica em cujos limites se acham as “unidades de sentido” que compõem o poema (“sentido” aqui, significando o efeito produzido pelo enunciado). Há poemas que têm forma fixa, e que são submetidos a regras especificas quanto à combinação de versos, rimas e estrofes. Um exemplo seria o soneto, que possui longa e profunda vitalidade na literatura, mas existem outros, como o rondó, o rondel, a balada, o canto real, o vilancete, a vilanela, a sextina, ou a quadra popular.

EXISTEM obras versificadas, que contam com todas as concessões de metro e ritmo, mas que não foram escritas como poesia. Ainda segundo Octavio Paz, obras como Alice no País das Maravilhas (de Lewis Carroll), ou o conto El Jardín de los Senderos que se bifurcam (de Jorge Luis Borges), poderiam ser chamadas de poemas, embora tenham sido escritas para ficarem fora do catálogo destes. Nelas, as frases não obedecem a uma ordem conceitual ou narrativa, mas são necessariamente orientadas pelas leis da imagem e do ritmo poético. Nesse sentido, é de se pensar que existe muito mais poesia no mundo do que poemas. E é verdade. Como salienta Friedrich Schlegel, autor de ‘Conversa sobre a poesia e outros fragmentos’: “há tanta poesia, e, no entanto, nada é mais raro que um poema. E isto inclui a enorme quantidade de esboços poéticos, estudos, fragmentos, etc. Assim como uma criança, que um dia se tornará um homem, um poema é apenas o produto da natureza que um dia poderá se tornar uma obra de arte”.

O FILÓSOFO e poeta francês Paul Valéry, autor de ‘Discurso Sobre Estética, Poesia e Pensamento’, por exemplo, compara a prosa a uma marcha e a poesia a uma dança.

NO POEMA, ao contrário do que ocorre na prosa, a frase não é o sentido ou o significado da narrativa, mas é, principalmente, o seu ritmo, a sua pulsação, a sua energia. Segundo a pedagoga Sílvia Regina Pinto, doutora em Letras pela PUC do Rio de Janeiro e autora de ‘Tramas e Mentiras’, há poesia sem poemas, pois, paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos, e, portanto, podem ser poesia sem ser poema. Quando a poesia acontece como uma condensação do acaso, ou quando é a cristalização de poderes e circunstâncias, estamos diante do poético, do “algo poético”, de alguma coisa que contém em si a alusão poética. Assim, podemos fazer poesia fora do poema, e dentro da prosa, por exemplo, ou dentro de um romance, ou de uma crônica, ou mesmo dentro de uma simples carta. Podemos ter poesia, enfim, na dança, na musica, na arte, em qualquer arte, no dia a dia e na vida em geral. Nada é necessariamente um poema, embora possa ser poético. Isso talvez explique porque o primeiro livro que eu saque da estante, em geral, não é um poema, mas se nele não houver fluídos poéticos, volta para a prateleira, quiçá sem a minha completa leitura.

NÃO QUERO mais o que algo de poético não tenha. Não quero mais escrever sem me acumpliciar com algum fraseado lírico alinhavado ao pensamento poético. Não sei se quero tudo em poema, mas não quero nada sem poesia. Quer seja um filme, uma peça teatral, um livro, uma escultura, uma gravura, uma postura, que nada me venha sem franjas poéticas, sem arestas de poesia, sem um soslaio dessa maravilhosa “forma” de ver a vida. Quero vê-la através da beleza, da elegância, da leveza e da mágica apoteose poética de sentir cada momento como se fosse o último, e por isso mesmo, como se fosse o melhor” (Kelly de Souza).

NO BLOG DA CULTURA – onde veicula o texto em estudo – há sensível comentário de uma seguidora, expresso nos seguintes termos:
“Aprendi a gostar de poemas no dia que percebi que era possível fazer poesia na prosa e que a poesia vai além daqueles versinhos que eu nunca gostei de fazer quando as professoras da escola pediam. POESIA PARA MIM TAMBÉM É UM JEITO DE VER A VIDA, uma maneira diferente e reveladora de entender o mundo. Existe um livro do qual eu gosto muito - Quando nem Freud explica, tente a poesia - em que Ulisses Tavares seleciona poemas que passam por temas estudados pela psicanálise. É fascinante ver que, às vezes, mesmo antes da criação da psicanálise, os poetas conseguem expressar em versos conceitos tão difíceis de entender racionalmente ou logicamente”. 


Afonso Estebanez