sábado, 20 de dezembro de 2008

FATALISMO


FATALISMO

Um dia podereis colher as rosas de vossos próprios jardins...
Um dia alguém acenará do outro lado da rua e vos dirá “Bom dia!”...
Um dia o expresso vai parar fora do ponto para embarcar um ancião...
Um dia podereis cruzar as avenidas sem temer balas perdidas...

Uma criança poderá sorrir compadecida de qualquer desconhecido...
As cadelas no cio poderão cruzar livremente pelos becos da cidade...
Os negros poderão exibir alegremente a moléstia racial dos brancos...
A liberdade poderá ser proclamada em paz na praça de Bucareste....

Mas vós estareis mortos de vergonha
no dia em que puderdes ostentar publicamente o gesto mais discreto
de como colher miniaturas de lua cheia nos ramos das videiras...
No dia em que esse chão, que é de pedras, for de estrelas...
No dia em que os canhões se transformarem em bicicletas de Pequim...
No dia em que a vergonha nacional
derrubar os seus muros de Berlim...

Ou já estareis mortos...
Definitivamente mortos...

Como morrem os pássaros...
Como morrem os poetas...
Como secam os jardins...
E se calam os profetas...

Como se exaure a esperança...
Como morrem as crianças
com suas almas desertas...

Afonso Estebanez

FACE TO FACE


FACE TO FACE

De todos os momentos insondáveis
mais bonitos da vida de uma mulher
– aquele em que ela toma a bandeira
sacode a poeira da breve amargura
e faz vibrar na alma as armas doces
de todo o encanto e formosura
na defesa ou conquista do amor
fundamental de sua vida...

Esse é o mais belo de todos.

Face a face, a alma de um homem
que tem as portas e janelas abertas
para o amor mais simples e fraterno,
sempre sabe quando esse momento
o encontra... E talvez o faça eterno...

Andar pelo mundo de vida pronta
e alma completa bem poderia ser,
a despeito de todas as melancolias
das prontas filosofias de plantão,
a maior e mais sábia recomendação
para os que acreditam ser possível
viver com a cabeça nas estrelas
e os pés no chão...

E não é tão complicado assim
caminhar num chão de estrelas...

Afonso Estebanez

EXALTAÇÃO


EXALTAÇÃO

Meu ser entrego ao derradeiro alento
no desenlace de minha alma ungida
pela esperança de num vão momento
galgar a morte na ilusão da vida.

Mas tudo o que me resta é a fé contida
num rasgo de prazer do sofrimento
de rebuscar na treva a luz perdida
no inferno elemental desse tormento.

E em já meu ser demente e sibilino
qual num culto de amor semidivino
minh’alma chora, hesita, mas persiste...

E flui por entre estrelas e alvoradas
num turbilhão de luzes deflagradas
ante a certeza de que Deus existe!

Afonso Estebanez
(Premiado em 1990 no “Concurso Nacional de Sonetos”
promovido pela Casa do Poeta “Lampião de Gás” – SP.
Comemoração ao centenário da morte de Guilherme de
Almeida)

EU VOU


EU VOU

Se for preciso reinventar
a vida e me fazer de conta
e retomar a alma já pronta
por onde nada mais restou...
Eu vou!

Se for preciso restaurar
a dor e me doer de novo
no cio ardente e copioso
do mal ausente que ficou...
Eu vou!

Se for preciso reanimar
a luz extinta no crepúsculo
imponderável do minúsculo
grão de areia que se apagou...
Eu vou!

Se for preciso me afogar
no charco por mero martírio
ou por razão ou por delírio
o lírio diga por quem vou...
Eu vou!

Se for preciso reinventar
o amor numa paixão suicida
e reencontrá-la além da vida
na lida que a paixão deixou...
Eu vou!

Afonso Estebanez

ETERNIDADE COMPARTILHADA


ETERNIDADE COMPARTILHADA

Quando eu for desta vida à eternidade
que o seja devagar sem nenhum medo
de estar indo e deixando uma saudade
de amores meus vividos em segredo...

Nessa viagem quero pôr meus braços
e os mais secretos ímpetos das mãos
em teu corpo tomando meus regaços
no abraço de dois seres quase irmãos.

Quero ir fecunda à minha vida nova
onde eu te encontre repentinamente,
onde os dias do amor que me renova
sejam meus dias férteis de semente.

Nosso êxtase será como o dos anjos
nosso encontro será num grito mudo
a proteção do amor é a dos arcanjos
e que o amor de Deus nos seja tudo!

Poema a quatro mãos de:
Afonso Estebanez & Sandra Almeida

ESSE AMOR QUE MORA EM MIM...


ESSE AMOR QUE MORA EM MIM...

Eu sei do amor como do mar as quilhas
dos barcos como o leme dos barqueiros
ancorados no sonho das remotas ilhas
do destino onde ancoram marinheiros...

Deus não desliga o amor de seu destino
se o destino do amor é o de ficar ligado.
Vem a esperança e traz no amor o hino
de louvor pelo amor de mim anunciado...

É místico labor fazer do amor o outono
em sortilégio de esperança e ser assim
como esse mágico viver além do sonho
da verdade do amor que mora em mim...

Afonso Estebanez

ERRO DE FATO



ERRO DE FATO

Maria dava seu leite
para o filho do patrão.
O patrão, porém, comia
(que Maria lhe servia)
toda a carne do João...

Mas João não tinha nada
que tomar satisfação!...
Então o causo se acaba
(por amor tudo desaba)
na evidente conclusão:

Maria morreu na frente
do revólver do patrão...

Afonso Estebanez