sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

CENTELHA


CENTELHA

Nunca espero desta vida
o que a vida não me deu
minh'alma compadecida
é do amor que renasceu.

Corações a toda a brida
o meu nas beiras do teu
mas tu amavas dividida
sem saber qual era meu.

Montanhas a fé remove
e o amor é que comove
a centelha dessa chama

que me dói e não apaga
e me diz que não acaba
que o amor inda te ama.

Afonso Estebanez

CANTINHO DA SAUDADE


CANTINHO DA SAUDADE

Ela soltou-se de um sonho
como quem acorda o beijo
no instante da eternidade.

A todo o instante suponho
ser um sonho meu ensejo
de sonhar de ser verdade.

E ela se apegou ao sonho
e me fez sentir num beijo
impressões de eternidade.

Mas ela perdeu meu sono
e eu durmo com o desejo
num cantinho da saudade.


Afonso Estebanez

CÂNTICO DE AMOR NOTURNO (Do Saltério de Sarom)


CÂNTICO DE AMOR NOTURNO
(Do Saltério de Sarom)

A hora é alta! E a noite é numerosa!
Morta é a lua no abismo da penedia!
Brame o oceano e freme a ventania
nos funerais noturnos da esperança...
E nem o amor pode fazer mais nada!
Deixei que minha vida se exaurisse
e que a escuna da alma se esvaísse
à bruma na memória da lembrança!

Oh, torrente assombrosa de paixões...
Não há rosa na vida que não sangre
ou lírio que viceje sobre o mangue
tinto de sangue ao látego do vento!
Divino amor dos deuses decadentes...
A aurora é luz na sombra iluminada
de uma opereta infrene e inacabada...
O amor saiu de cena antes do tempo!

Oh veredas lunadas! Oh candeias
do último luar que morre em mim
como luz entre as urzes do jardim
ou o ninho entre sarças encoberto!
Último cântico dos mortos sonhos
idos na flor ardente de Hiroshima!
Sonhar de amor que dói e desatina
e esvair-se como o oásis no deserto...

Procurei pelo amor por toda parte...
Debalde! Nem os cânticos dos rios
nem os porões escuros dos navios
puderam-me dizer onde encontrar!
No sonolento olhar das aves puras
na cruz da sepultura de meus pais
ou na honra sem dor dos samurais...
Não se vê onde possa o amor estar...

Quem sabe se nos idos medievais!
No princípio dos meios e dos fins...
Nos berçários azuis dos querubins
onde o amor é prodígio da paixão!
Mas amor sem o amor está banido...
Espada que não serve ao cavaleiro,
aventuras do barco sem barqueiro
pelos mares do amor sem a ilusão!

Há ainda os cadáveres das mães
jazidos na poeira dos escombros...
Há o peso dos corpos e os ombros
no fúnebre despejo das tragédias!
Ah, cântico de morte! Madalenas!
Chorai por esperanças prometidas
no jubiloso regresso das partidas,
o lado menos triste das comédias...

Chorai pelo destino de Desdêmona!
De Beatriz de Julieta e de Eurídice...
Cantai o amor maior do apocalipse...
Pelo amor de Jocasta! Oh corifeus!
Pela paixão dos astros e do eclipse...
Das prostitutas pelo amor proscrito
acolhido pelo amor de Jesus Cristo,
o Bem Supremo da paixão de Deus!

Deus! Depõe esse cântico de amor
nas veredas profundas do oceano!
Sustenta esse meu doce desengano
por esses mares de paixões e além...
Faça-me ânfora de um vinho novo.
Devolve a profecia ao seu profeta
e esse dom da poesia ao seu poeta
que tange às portas de Jerusalém!

Quero o amor infinito dos amantes
além dos fundos falsos das janelas
de onde o cio amoroso das gazelas
fertilize o deserto além do Hebrom...
O aroma dos vinhedos verdejantes
os amores do gamo sob as vinhas
guardadas pelo amante das rainhas,
como as rosas dos vales de Sarom!

Afonso Estebanez

CANÇÃO DE BEM-QUERER


CANÇÃO DE BEM-QUERER

Ensina-me a ser assim
com tuas asas tão leves
tão breves quanto suaves
como aquelas semibreves
do canto de minhas aves...

Fica perto do meu céu
como a flor encabulada
na beirada de um jardim
ou no fim da caminhada
que acaba dentro de mim...

Fica como se tivesses
teus sentidos acordados
no meu calvário sem cruz
e nossos corpos pregados
com cravos feitos de luz...

E me vem como se vai
fingindo que vai embora
teu agora é o nunca mais
como quem sabe da hora
mas ir embora jamais...

Afonso Estebanez

CANÇONETA


CANÇONETA

Eu diria – são flores as pedras
em que pisam teus pés viajores...
Tuas dores – diria – são quedas.
Eu diria – nas pedras de flores.

Sobretudo no vento que passa
como brisa tu passas no tempo.
Porque voas tão cheia de graça.
Eu diria – nos braços do vento...

E diria que a estrada é tão curta,
quem sabe não seja uma estrada.
Eu diria – uma entrada noturna
do caminho de alguma alvorada...

Peregrina, são flores as pedras
na cantiga de amáveis cantores.
As veredas – diria – são breves.
E diria que as pedras são flores...

Afonso Estebanez

CANÇÃO SONOLENTA


CANÇÃO SONOLENTA

Correm lentos noite e rio
nos atalhos entre o vento
aquecendo a mão do frio
nos retalhos do relento...

A brisa vem-me acalmar
de antigo ressentimento
e o vento me vem cantar
de tanto contentamento.

Na alameda à luz da lua
sob o céu além do tempo
nas poças d’água da rua
entre luzes me contemplo.

Futuro não tem passado
e o presente não tem fim.
Há em mim um outro lado
de um outro lado de mim...

Jaz-me a alma repousada
e uma flor calada em mim
como saudade encostada
no canteiro de um jardim...

Afonso Estebanez

INICIAÇÃO DA LIBERDADE


INICIAÇÃO DA LIBERDADE

A alma forja o bem na dor do mal
e o espírito aos lanhos da matéria...
Na carne a fome crava seu punhal
nas entranhas famintas de miséria.

Cada gota de sangue cada artéria
deflui do corpo o cáustico e letal
veneno em que declina deletéria
da alma a pátria amada e triunfal.

Mas já transcende a paz à tirania
ao desamor cativo a consciência
liberta dos porões da insanidade...

E lança de um clamor sem agonia
o sêmen genial da independência
sobre o leito nupcial da liberdade!

Afonso Estebanez