segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

LUCIRANDA


LUCIRANDA

Entre o olhar e a palavra
algo fala e reluz
num caminho sem curvas
de algum raio de luz...

Como risos da areia
derramada no vento
som de chuva na água
num cantar sem lamento...

Vago instante da aragem
em que a relva soluça
à procura do lado
em que a flor se debruça...

Leve cheiro de orvalho
canto de ave no cio
flor e flauta em murmúrio
no remanso do rio...

Afonso Estebanez

LISA


LISA

Nos ciprestes quem dança
é a toada perdida
se é o vento quem canta
e quem chora é a brisa.

Chuva fina no rosto
e entre musgo escorrida
nas penugens do corpo
descoberto de Lisa...

No lençol de alvo linho
uma rosa imprimida
em sudário de cio
sob lua precisa.

Da janela do quarto
ouço vaga cantiga
de algum anjo em compasso
com os passos de Lisa.

E na rua quem vaga
é a flauta partida
da canção acabada
na toada indecisa...

Nos ciprestes quem mora
é a flauta perdida
se é o vento quem chora
e quem canta é a brisa...

Afonso Estebanez

LINHA CRUZADA


LINHA CRUZADA

Postes telegráficos
esses cactos das caatingas
calados sem se calar...
Mas adonde estão os fios?
Por acaso deus se esconde
ou finge que não responde
preces pelo celular?

Se eu morresse amanhã
de saudade eu gritaria
e ninguém comentaria
se nem deus vai escutar...

De saudade vou morrer
e nem deus vai comentar...

Afonso Estebanez

LA CUISINE EN FLEUR


LA CUISINE EN FLEUR

Pega as rosas do ciúme
e os espinhos do jardim
e os refoga no perfume
dos ramitos de alecrim...

Coração ao fogo brando
para a alma me aquecer
vai em breve refogando
meus desejos de viver...

Espera chegar ao ponto
em que a liga dê prazer
onde tudo seja encanto
pelo encanto de viver...

E de noite à luz da vela
em cada prato uma flor
eu tomo dos lábios dela
um sobrebeijo de amor...

Afonso Estebanez

JUDAS


JUDAS

Os que venderam a fórmula
da bomba e da talidomida
mataram mais do que Judas
com o beijo da traição.

O Mestre expiou-se na forca,
mas os discípulos, não!

Os mercadores de armas
os caçadores de índios...
Todos renegam a forca.
Os sadânicos satãs
os fratricidas armados
os algozes travestidos
de juízes da multidão...

Todos mataram mais cristos
do que o mestre vendilhão...
Mas se passam naturalmente
por Judas – o bom ladrão!

Afonso Estebanez

INTIMIDADE


INTIMIDADE

Não foi, amada!
Não foi o orvalho
da madrugada...
Foi a lua na janela
que te surpreendeu
dormindo e chorou
desconsolada...

Afonso Estebanez

INTERMEZZO


INTERMEZZO

A oficina do amor é o coração.
Quando se consumar a profecia
já não precisarão mais do profeta.
Quando se consumar a poesia
já não precisarão mais do poeta...

Por isso devo reinventar o amor
antes de reinventar a minha vida...

Vou conversar apenas com as flores
falar somente em bem-aventurança
calar-me para sempre como a alma
sepultada no fundo da esperança...

Eterno como a noite sobre a pedra
na história da canção despercebida...
Como o silêncio sábio da memória
das coisas simples
não compreendidas...

Afonso Estebanez

EPITÁFIO - I


EPITÁFIO - I

Guardei banais segredos dos amores de criança
dos mistérios da infância ouvi apenas por tolice
contei parábolas de amor porque o próprio amor
predisse que na vida viveria só dessa lembrança
de reviver das cinzas de uma flor do apocalipse...

Afonso Estebanez

EPITÁFIO - II


EPITÁFIO - II

E das águas correntes desse rio em minhas veias
de onde doce fluísse uma canção jamais ouvida...
Talvez de alguma fonte de desejos clandestinos
ou dos prazeres matutinos de profanas ladainhas
dos arcanjos decaídos de meus sonhos suicidas...

Afonso Estebanez

EPITÁFIO - III


EPITÁFIO - III

Apraz-me então morrer dos místicos presságios
de quem padece lentamente da secreta liturgia
de reencontrar-me pelo acaso de um momento
em que a parte encantada de mim fosse a magia
desse feitiço de poder-me amar além do tempo...

Afonso Estebanez

EPITÁFIO - IV


EPITÁFIO - IV

E era tudo o que a alma não defesa pretendia...
E para muito além do que muito além de mim
onde jaz meu pássaro cantor de súbito abatido
concebido me fosse então morrer de desamor
se reviver de amor a mim não fora concebido...

Afonso Estebanez

HÁBITO ADQUIRIDO


HÁBITO ADQUIRIDO

Meus dias têm o hábito
de caminhar pela alameda sem dar conta de mim.
Um hábito que as tardes me ensinaram generosamente.
Os bolsos cheios de nada e as mãos vazias de tudo...
De volta, o portão de casa entreabre os braços secos
e me convida para entrar...

E vem aquela sensação de que esqueci
de me lembrar do que o dia indiferente não contou...
Retorno em busca da lembrança do sorriso de amizade,
do cântico de um pássaro, de um beijo que me deu a brisa...
E só então percebo que minhas mãos vadias
– não sabendo uma o que a outra anda fazendo –
já me haviam tocado o coração secretamente
com o encanto que as idas e vindas pela vida
acabavam de me dar...

Entro afinal, e num cantinho da memória
um sorriso de criança acende a luz
da minha alma...

Como se alguma flor esquecida
estivesse me estendendo a mão...
... a mão do aroma de rosas
que ainda me acompanha...

Afonso Estebanez