quinta-feira, 17 de novembro de 2016

CRÔNICA POÉTICA 
DOS HERDEIROS DE GARVAIA
(Modo 9)


A boca não é cárcere da língua
nem os dentes muralha da palavra...
Oh, cantai! Mas não canteis apenas uma época,
que o tempo é a estalagem do futuro dissidente
onde tereis somente descoberto o caminho para a América.

Fui cúmplice de Laura nos triunfos de Petrarca,
de Tétis conheci o que de Eneida o Virgílio ignorava.
Eu amava Beatriz no leito de todas as mulheres
que a Dante contemplá-las era só o que bastava...

Mais louco do que Tasso tolerante como Gôngora divino como Herrera.
Mais sincero que Miranda mais puro que Anchieta e belo como Marini.
Mais humilde que Montaigne e sábio como Zurara
mais austero que Ferrera.
Corajoso como Bellay, paciente como Shakespeare e fiel como Guarini.

Se vos parece muito e preferis ser apenas um Restelo,
ao menos o estudo com o vosso desterro cumulado
deveis deixar em paz ao modernismo bem-te-vi
que o inexorável romantismo inda não é chegado...


Afonso Estebanez 

CRÔNICA POÉTICA
DOS HERDE IROS DE GARVAIA 
(Modo 10)

Perguntai a Glauceste, a Daliana,
a Critilo, a Minésio, a Doroteu,
perguntai ao Gonzaga, a Juliana,
perguntai a Marília de Dirceu...

Sabei dos conjurados matastásios,
das nisas pastoris e alcimodontes,
se os ventos que bafejam estes vales
não bafejam primeiro o trás-os-montes?

Sim, que para lisonja do cuidado
testemunhas serão de meu gemido
este monte, aquele vale, aquele prado...

O negro a galope
atrás o chicote
seu grito de morte...
Meninos, eu vi!...

Eu vi o menino correndo...
Vi muitos e muitos galopes.
Vi o rei dar um golpe no tempo
e um trote no Solano Lopes...

Afonso Estebanez
CRÔNICA POÉTICA
DOS HERDE IROS DE GARVAIA 
(Modo 11)

Meninos, eu vi!...
Meninos, eu li!...

Eu vi a Breve Crônica
de Como Dom Paio Correia tomou este Reino de Algarve aos Mouros
sem que os Errantes Encavalgados da Cruzada Santa tombassem
de tão exaustos ou de Mau Súbito Ante a Visão do Cavaleiro Túndalo.

Eu li o “Poema Americano Dedicado à Magestade
do Muito Alto e Muito Poderoso Príncipe e Senhor Dom Pedro II,
Venerável Grã-Imperador Constitucional 
e Defensor Perpétuo do Brasil”...

? Meninos, e quem não leu...
? Meninos, e quem não viu... 
Subir tanto que desceu...
Oh, meninos do Brasil!...

Afonso Estebanez 

CRÔNICA POÉTICA 
DOS HERDEIROS DE GARVAIA
(Modo 12)

Meninos, eu vi!...

O rio caudaloso onde todos vêm beber:
o quilombo e a nobreza apeada do poder...
da ermida a esguia sombra e a noite na mortalha...
o abutre da casa-grande e o cordeiro da senzala...
o falcão da catedral e a andorinha campesina...
a pomba do espírito santo e a ave de rapina...
a serpente rastejante e o condor – fênix do céu...
o descontente do rei e os contentes do bordel...
o escravocrata lapidado a golpes de melodrama...
o burguês bayroniano literomaníaco de spleen...
o cangambá morossoca tedesco-sorobacana...
o corvo republicano do golpe de Aberdeen...

O dia da lembrança de morrer...
Deixar a vida como deixa o tédio
do deserto o poente caminheiro...
A pálpebra demente
o delirium tremens
o longo pesadelo
a face macilenta
esse infinito anelo
o desespero pálido
o anêmico azevedo
o lati-sem-fúndio
a placidez do lago
a solidão do ermo
o tremedal profundo...

Afonso Estebanez 
AMIZADE:
FLOR DE ESPERANÇA

Sou louco que acredita em esperança.
Sou as sístoles e diástoles das ilusões.
Reflito luzes das auroras impossíveis
reabrindo janelas azuis nos corações...

Tu me entranhas de bênçãos e divino
bafejo de ternura suave e comovente...
Exorcizas meus sonhos de fantasmas 
como anjo que me fala complacente.

E és como um luminar sem sombras
abrindo portas trancadas pelo tempo.
Ave o amor que tira dos escombros
meu pássaro cantor sem banimento... 

Cúmplice do bem que trago n’alma
e testemunha transitiva da memória!
Podes vir! Tua mão é minha palma
nos escritos de minha vaga história...

Afonso Estebanez

AMOR AO VINHO DE ROSAS

Esta noite
tu me permitirás ajardinar teu corpo
nos mais esconsos roseirais de amor 
em bosques sublimados no conforto 
de aviar espinhos sem ferir-te a flor...

Esta noite
procriarei em teus fecundos ninhos
de aves marinhas de plantão no céu...
Ah, rosa ausente dos cruéis espinhos!
Vinho de rosas com sabor de mel...

Esta noite
tomar-te-ei o amor que me suaviza
a alma sem nenhum ressentimento... 
Verei teu corpo com o olhar da brisa
e o tocarei só com as mãos do vento... 

Mas esta noite
quero-te o gozo múltiplo e esvaído
como as últimas lágrimas sem dor...
Só a dor de um calvário consumido
no inexorável instante desse amor!

Afonso Estebanez 
“BEIJÍSSIMOS”

Por tudo o que me deste
por tudo o que não deste
a minha gratidão
em beijos de perdão...

Por tudo o que te dei
por tudo o que não dei
a tua gratidão
em beijos de perdão...

Beijíssimos
dulcíssimos 
uníssonos
no coração...

Afonso Estebanez 
CÂNTICO DE AMOR NOTURNO
(Do Saltério de Sarom)
A hora é alta! E a noite é numerosa! 
Morta é a lua no abismo da penedia!
Brame o oceano e freme a ventania 
nos funerais noturnos da esperança...
E nem o amor pode fazer mais nada! 
Deixei que minha vida se exaurisse
e que a escuna da alma se esvaísse 
à bruma na memória da lembrança!

Oh, torrente assombrosa de paixões... 
Não há rosa na vida que não sangre
ou lírio que viceje sobre o mangue 
tinto de sangue ao látego do vento!
Divino amor dos deuses decadentes... 
A aurora é luz na sombra iluminada
de uma opereta infrene e inacabada... 
O amor saiu de cena antes do tempo!

Oh veredas lunadas! Oh candeias 
do último luar que morre em mim
como luz entre as urzes do jardim 
ou o ninho entre sarças encoberto!
Último cântico dos mortos sonhos 
idos na flor ardente de Hiroshima!
Sonhar de amor que dói e desatina 
e esvair-se como o oásis no deserto...

Procurei pelo amor por toda parte... 
Debalde! Nem os cânticos dos rios
nem os porões escuros dos navios 
puderam-me dizer onde encontrar!
No sonolento olhar das aves puras 
na cruz da sepultura de meus pais
ou na honra sem dor dos samurais... 
Não se vê onde possa o amor estar...

Quem sabe se nos idos medievais! 
No princípio dos meios e dos fins...
Nos berçários azuis dos querubins 
onde o amor é prodígio da paixão!
Mas amor sem o amor está banido... 
Espada que não serve ao cavaleiro,
aventuras do barco sem barqueiro 
pelos mares do amor sem a ilusão!

Há ainda os cadáveres das mães 
jazidos na poeira dos escombros...
Há o peso dos corpos e os ombros 
no fúnebre despejo das tragédias!
Ah, cântico de morte! Madalenas! 
Chorai por esperanças prometidas
no jubiloso regresso das partidas, 
o lado menos triste das comédias...

Chorai pelo destino de Desdêmona! 
De Beatriz de Julieta e de Eurídice...
Cantai o amor maior do apocalipse... 
Pelo amor de Jocasta! Oh corifeus!
Pela paixão dos astros e do eclipse... 
Das prostitutas pelo amor proscrito
acolhido pelo amor de Jesus Cristo, 
o Bem Supremo da paixão de Deus!

Deus! Depõe esse cântico de amor 
nas veredas profundas do oceano!
Sustenta esse meu doce desengano 
por esses mares de paixões e além...
Faça-me ânfora de um vinho novo. 
Devolve a profecia ao seu profeta
e esse dom da poesia ao seu poeta 
que tange às portas de Jerusalém!

Quero o amor infinito dos amantes 
além dos fundos falsos das janelas
de onde o cio amoroso das gazelas 
fertilize o deserto além do Hebrom...
O aroma dos vinhedos verdejantes 
os amores do gamo sob as vinhas
guardadas pelo amante das rainhas, 
como as rosas dos vales de Sarom!

Afonso Estebanez