sábado, 19 de novembro de 2016

NOTA:

Nota: por ciência do antigo provedor da paróquia local, soube-se que as únicas referências conhecidas a respeito do velho alforriado, também lembrado como um dos últimos ex-escravos beneficiários de terras improdutivas, eram uma cruz de madeira à beira de um caminho dito “Caminho da Tocaia” e um antigo registro de ocorrência policial arquivado sem solução na cadeia local da comarca onde se deu o fato.

Julis Calderon d'Estéfan
(Heterônimo de Afonso Estebanez)
O ALFORRIADO
(Um cordel de suspense brasileiro)


Primeiro:
era um negro alforriado
que esquecera o tempo escravo
num roçado canavieiro...
Como pássaro evadido
que no céu perde a memória
do tempo de cativeiro.
Agora num eito próprio
laborava à luz da lua
cultivando aquela terra
que era farta – e que sua!

Segundo:
de uma feita foi a ele
com bons-dias-meu-cumpadre
um coiteiro de bundões...
Balas cruzadas no peito,
não era bença do frade
que levava nos bordões.
Foi ao assunto o sujeito:
“O patrão só quer o eito,
sem plantio, a terra nua”.
Mas o negro não vendia,
aquela terra era sua!

Terceiro:
depois foi um coronel
com dois motivos na cinta
e dez jagunços na nuca,
montado num baio louco
com o demonho no corpo
e um bacharel na garupa.
Era a gleba ou o latifúndio...
E enquanto vencia a guerra
do não ata nem desata,
ele não cedia a terra
que era sua e que era farta!

Quarto:
houve agentes do governo
latifúndios estrangeiros
os puros de falcatrua,
que em troca daquela gleba
lhe dariam na cidade
o sossego de uma rua...
Mas o negro não queria,
só queria aquela terra
que era farta e que era sua!

Quinto:
até que um dia marcado
marcado de coisas sujas,
depois de tanta bravata
o negro foi tocaiado
e morto por mãos impunes
do outro lado de uma faca...
Ficou vacante sua vida
de mais um João sem a terra
que era sua e que era farta!

Sexto:
era um velho alforriado
o negro que assassinamos
com requintes de maldade... 
Foi um pássaro abatido
que na morte reencontrou
a terra da liberdade.
Tomamos-lhe, enfim, a gleba
que era a sua vida nua,
mas não tomamos a terra
que lhe demos sendo sua!... 

Julis Calderon d'Estéfan
(Heterônimo de Afonso Estebanez)
ZUMGROPOEM


Aqueles dias foram dos abdias
foram os dies irae dos zumbis.
Eu vi... os gnomos elementais
e ouvi a fala suaili... Eu ouvi!
Eu revi os cabelos prateados
a lua branca sobre os altares
dos lombos negros açoitados
e vi a escuridão de Palmares.
                   

 Um quilombo de denúncias...
 Os atanásios das montanhas
 encachoeiradas de além dali
 o desafio do dente-de-sabre
 do Kilimandjaro! Ah, gente!
 Eu vi! a face do tigre nobre
 e um príncipe das tanzânias
 a Amazônia da renascença
 Nagôiorubrasileiro... Eu vi!...
                                      

Eu vi Deus saudar o Afoxé
sagrados badauês aiyêsd

Deus dizia “ – Meu Oxalá!”.
Deus dizia “ – Salve!, Axê!”
O bem maior é a liberdade
– essa é a única ideologia


faz o homem ser solidário
diferente Deus não faria!...

Afonso Estebanez 
A MAGIA DA EXPRESSÃO LITERÁRIA
OFICINA - MÓDULO 01


A Magia da Expressão Literária está na beleza da arte da comunicação humana através da linguagem materializada segundo a combinação dos sons e tons dos fonemas, palavras, enunciados ou expressões, escritos ou emitidos oralmente para se referir à realidade ou à ficção inerente aos mundos objetivo (material) ou subjetivo (imaterial), com habilidade, talento, equilíbrio e harmonia.

A Oficina da Magia da Expressão Literária não se propõe a mais um derrame de estudos analíticos, didáticos, pedagógicos ou metodológicos da arte de escrever, porquanto a linguística convencional vem sendo largamente envolvida pela compreensão científica da metalinguística, que no conceito dos estudiosos do século passado (Bakhtin e a poética de Dostoiévski) descreve os aspectos não verbais da comunicação, em que englobam o tom da voz, o ritmo da fala, as pontuações e outras características que vão além da palavra falada ou escrita, mas nos lembrando sempre que é dela – palavra – que extraímos o significado plurilinguístico pela forma com que é expressa, evidenciando aqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam os limites da linguística dogmática. Eis, assim, o sentido global da “Magia da Expressão Literária"

Porém, é sensato que nos atenhamos, por enquanto, ao ofício da materialização linguística da poesia e da elucidação de alguns de seus mistérios, através do culto à cumplicidade, à lealdade e à simplicidade de expressão poética. Não existe metodologia ou cartilha específica para o ofício de poeta. O que existe em cada um de nós é a poesia em sua concepção psicodualista (inspiração), a reclamar materialização através de qualquer processo conhecido de comunicação humana (expressão), esta sempre obediente a um mínimo de preceitos básicos, sem os quais não poderá alcançar o público leitor que lhe dará, ou não, reconhecimento e aprovação.

Em língua portuguesa ou estrangeira, é torrencial o que se tem escrito sobre estilo, análise literária, estilística ou técnica literária no mundo contemporâneo. Entretanto, é notória – e até mesmo paradoxal – a dificuldade que se tem na indicação de obras que concentrem apenas o essencial ao aprendizado eficaz da arte de escrever poesia ou de analisar textos literários.

Assim, mais elegante é não privilegiar nenhum autor relacionado com o tema no mercado literário, para que não se desvie o mérito da liberdade de escolha de cada interessado e não se perca de vista o sentido da ação solidária pretendida.

O que desejamos, unicamente, é prestar algum serviço aos que se queiram valer do nosso trabalho. No decurso das atividades da Oficina faremos apenas as citações indispensáveis ao conhecimento do tema – poesia – e procuraremos extrair de nosso próprio ambiente literário os exemplos, paradigmas e experiências úteis ao aprendizado recíproco, tentando guardar possível verossimilhança com o estudo da literatura comparada.

No próximo módulo abordaremos os conceitos de poesia e poema, baseados em princípios que o eminente professor Pedro Lyra – que transita entre nós – denomina de “Transitividade do Ser”.

Afonso Estebanez
O OFÍCIO DO POETA 


Objetivo: prestar auxílio cultural voluntário aos interessados em iniciar na arte da criação literária no âmbito da poesia, através de estímulos especiais que visem à desobstrução do medo resultante da inibição, da timidez, da discriminação de qualquer espécie e de outros fatores de exclusão dos indivíduos do processo de autoafirmação sociocultural.

Concebida a poesia, passa o criador à expressão material de seus pensamentos e sensações, realizando-os de ‘maneira original’ ou não, com ‘estilo pessoal’ ou não, conforme sua maior ou menor aptidão. A ausência de originalidade ou estilo pessoal próprio não implica em negação psicomonista do êxtase poético: o leitmotiv. A poesia existe em sua concepção psicossomática dualista. Falta-lhe, porém, a criatividade da comunicação, sempre obediente a um mínimo de preceitos básicos, sem os quais não poderá alcançar o público que lhe dará, ou não, reconhecimento e aprovação.

É por aí que “O Ofício do Poeta” entra para tentar auxiliar, considerando que a criação literária tem sido interpretada, em todos os tempos, como a fusão da intenção criadora e a expressão artística. A palavra – antes elemento nuclear da comunicação – vem absorvendo as mutações lingüísticas próprias do avanço tecnológico do nosso tempo, não devendo – por enquanto – ser foco principal de nossos propósitos iniciais.

Todavia, é fundamental reconhecer que na palavra ‘Há intenções, emoções ou vivências ocultas sob os seus tons e sons indiferentes. A palavras escrita oculta o mundo espiritual do poeta e o leitor compreensivo pode desentranhá-lo. A palavra fixada no texto literário tem acepção e valor convencional no mercado lingüístico’, a despeito da singularidade com que é tratada no mundo contemporâneo. Mas ‘a palavra, já pelo contexto, já pelo matiz insuflado pelo seu criador, passa a ter significado especial, diverso do uso corrente’ (Castagnino em El análisis literario). Neste caso, “O Ofício do Poeta” pretende relevar também, como plano do ‘fato literário’, o princípio de que ‘sonhos são direitos fundamentais indisponíveis da alma humana’ e, como tal, intocáveis...

Afonso Estebanez
Dezembro/2013
SALÁRIO MÍNIMO



pão duro de forma
forjado no forno
abafado da fórmula

dízima periódica
da justiça fundiária
trafegando em carro-forte
à prova de bala

clarão interrompido
que a conquista do ridículo
contagia

eco da senha do grito de greve
batido
no muro de um beco sem saída

palavra de passe da angústia solidária
das máquinas perfiladas sobre a mesa
de jantar dos balanços de vísceras
e perdas e danos e lucros e cifras

recessão da liberdade
que perdeu o barco
da travessia humana...

Afonso Estebanez
(Em memória do poeta Cesar de Araujo
um companheiro/solidário/inesquecível)
AMOR IMPREVISÍVEL



além de mim muito mais além de mim
muito além do que muito além de mim

onde jaz sem memória o meu anônimo
amor além do acaso onde é impossível
perecer o imperecível amor de outono

no alvorecer noturno de uma flor tardia
meu desejo insensato ainda aguardaria

que da sombra o crepúsculo emergisse
e nos cobrisse a alvorada de esperança
de reviver o amor do inevitável eclipse

Afonso Estebanez
(Poema dedicado à Dulce Jacob Genari)
LIVRO DE VIAGEM OU DO DEPOIMENTO


PRIMEIRO que tudo aceito a tirania da saudade
que levo como prova de amor envergonhado:
meu povo é a mulher de todos.
Minha gente submetida da América deBaixo
é a puta rendida da América deCima.
As gaivotas negras da paz estão pousadas
nas sombras das pedras machucadas pelo tempo
– a decidir caminhos que vão não sei pra onde
gritando liberdade de não sei o quê...
O que humilha mesmo é essa guerra de muletas
onde a vergonha da derrota nos obriga
a colher restos de louro jogados pelo chão.
Acostumamo-nos a estender as nossas mãos estradas
e os nossos braços trilhos às locomotivas
que colidem todo o dia com o nosso coração.
E vamos passando em nós uma cidadezinha antiga
onde o Rei um dia prometeu passar...
– E não passou!
Não sei onde arranjei essa coragem de dizer
que nossas guerras são de auroras
renascentes na paz do sangue verde matutino
da criança que ainda acordará dentro de nós...

SEGUNDO a prova do tempo
o irmão cosmoascencionário
não tem ódio nem amor...
Apenas curte a cobiça
do enteu bdélio e formal
– o degas imperador.
Morra a flor, mas guerra é guerra.
Nos bate-bocas da paz
make tecnic of love!
Desde que inventou a fome,
das primas virgens não há
uma só que ele não prove.
Fora, faz praças de sangue
para mostrar na cozinha
aos irmãos que é o mais forte...
No momento da partilha,
se quiser levar a vida
que leve também a morte.
Fraternidade promíscua!
Faz pensar que o beijo seja
a arma com que se apossa...
No entrevero da conquista,
desfralde a sua bandeira...
Mas nunca defraude a nossa!

TERCEIRO mundo ou planeta
ou cortina de montanhas
onde as mãos que não semeiam
tiram flores das entranhas...
Onde o canto se constringe
com mil facas na garganta
que pra viver em que ouve
precisa matar quem canta.
Ninguém sabe a leite ou mel
estrangeiras ilusões
sob a terra prometida
as sementes dos canhões.
Torne ao chão o que é do chão
cada um tem seu processo
e ninguém condene a falta
quando peca por excesso...
Terras, máquinas, nem sempre
põem coroas em quem vence...
Pelo homem haja quem faça,
não haja nunca quem pense.
A semântica da língua
é reserva do senhor...
– Amados, não sejais mudos,
envenenai-vos de amor!

QUARTO de família. 
Odor de gasolina na floresta.
Mulheres cheirando a flor de arroz
chapéus-de-palha na cabeça.
Ah, crianças morrem
porque não sabem que há flores
que são napalms.
Os homens voltam dos pântanos
os alvos dentes camuflados
pelo silêncio premonitório da família.
Quando estiverem todos dormindo
o profundo sono da tragédia
os passarinhos inventarão a guerra...

QUINTO milênio de paz e mistério
nos alvos vultos de voláteis vestes
onde vem leve o vento flautear.
Na pachemina em sândalo na seda
que vão cantando músicas de vidro
purificando os dedos no tear.
Um rebanho se move lentamente
como um rio tangido pelo canto.
Nos braços da mãe um anjo levita...
Ouvem-se passos de velhos amigos
e tece em silêncio toda a família
o pão de amor com que se comunica.
Sáris brilhantes teares incenso...
Aurora policrômica de um deus
que nos fala como antigo parente.
É o segredo da paz que não sentimos
quando nós sem amor lhe desvendamos
o mistério da fome que não sente

SEXTO continente sem amor amado
comprado a peso de ouro
no mercado inflacionário dos brancos.
Os guetos são o sexto sentido
da liberdade currada.
Os mercadores da guerra acreditam
que o amor odiado morre com a morte.
Mas o preço do ódio vendido
é ser vermelho o sangue dos negros...
– Livre, há de querer provar o quanto é forte!

CIRANDA cirandinha
vamos todos cirandar
nossa paz saiu de casa
mas um dia vai ficar...
ou foi dar uma voltinha
para nunca mais voltar...

Afonso Estebanez Stael
(Prêmio “Troféu Casimiro de Abreu” do III Torneio Nacional da Poesia Falada de 1970 – Governo do Estado do Rio de Janeiro – Secretaria de Educação e Cultura – Departamento de Difusão Cultural. Governo do saudoso Geremias de Mattos Fontes. O poema foi cassado pela censura do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) para apresentação pública pela Tv Globo durante a repressão do regime militar instalado no país em 1964, sob os veementes protestos do poeta Cassiano Ricardo, então presidente da Comissão Julgadora do concurso, que nem assim conseguiu passar pela mordaça da censura federal. FOTO: GUERRA DO VIETNÃ 1973 - A fotografia foi tirada por Huynh Cong Ut da agência Associated Press e recebeu o Prêmio Pulitzer de 1973. Esta menina correndo nua se chama Kim Phúc que, 40 anos depois, procura não falar do assunto que ainda hoje lhe causa lembranças traumática da guerra que ela não consegue mais esquecer.