sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

CÂNTICO DE AMOR NOTURNO
(Do Saltério de Sarom)


A hora é alta! E a noite é numerosa!
Morta é a lua no abismo da penedia!
Brame o oceano e freme a ventania
nos funerais noturnos da esperança...
E nem o amor pode fazer mais nada!
Deixei que minha vida se exaurisse
e que a escuna da alma se esvaísse
à bruma na memória da lembrança!

Oh, torrente assombrosa de paixões...
Não há rosa na vida que não sangre
ou lírio que viceje sobre o mangue
tinto de sangue ao látego do vento!
Divino amor dos deuses decadentes...
A aurora é luz na sombra iluminada
de uma opereta infrene e inacabada...
O amor saiu de cena antes do tempo!

Oh veredas lunadas! Oh candeias
do último luar que morre em mim
como luz entre as urzes do jardim
ou o ninho entre sarças encoberto!
Último cântico dos mortos sonhos
idos na flor ardente de Hiroshima!
Sonhar de amor que dói e desatina
e esvair-se como o oásis no deserto...

Procurei pelo amor por toda parte...
Debalde! Nem os cânticos dos rios
nem os porões escuros dos navios
puderam-me dizer onde encontrar!
No sonolento olhar das aves puras
na cruz da sepultura de meus pais
ou na honra sem dor dos samurais...
Não se vê onde possa o amor estar...

Quem sabe se nos idos medievais!
No princípio dos meios e dos fins...
Nos berçários azuis dos querubins
onde o amor é prodígio da paixão!
Mas amor sem o amor está banido...
Espada que não serve ao cavaleiro,
aventuras do barco sem barqueiro
pelos mares do amor sem a ilusão!

Há ainda os cadáveres das mães
jazidos na poeira dos escombros...
Há o peso dos corpos e os ombros
no fúnebre despejo das tragédias!
Ah, cântico de morte! Madalenas!
Chorai por esperanças prometidas
no jubiloso regresso das partidas,
o lado menos triste das comédias...

Chorai pelo destino de Desdêmona!
De Beatriz de Julieta e de Eurídice...
Cantai o amor maior do apocalipse...
Pelo amor de Jocasta! Oh corifeus!
Pela paixão dos astros e do eclipse...
Das prostitutas pelo amor proscrito
acolhido pelo amor de Jesus Cristo,
o Bem Supremo da paixão de Deus!

Deus! Depõe esse cântico de amor
nas veredas profundas do oceano!
Sustenta esse meu doce desengano
por esses mares de paixões e além...
Faça-me ânfora de um vinho novo.
Devolve a profecia ao seu profeta
e esse dom da poesia ao seu poeta
que tange às portas de Jerusalém!

Quero o amor infinito dos amantes
além dos fundos falsos das janelas
de onde o cio amoroso das gazelas
fertilize o deserto além do Hebrom...
O aroma dos vinhedos verdejantes
os amores do gamo sob as vinhas
guardadas pelo amante das rainhas,
como as rosas dos vales de Sarom!


Afonso Estebanez
ENIGMA DE ME VOLTAR



Talvez eu volte corrimão de rios tortos
por onde vem beber a lua amedrontada...
Espírito cantor dos pássaros já mortos
sob os destroços de uma flor inacabada...

Caravelas de nuvens como pressupostos
do transporte por céu da luz embriagada...
Quiçá refaça-me de restos recompostos
com os pedaços de minha alma fatigada...

Talvez eu venha como o ser e a solução
como ave presa na lembrança da canção
ou como flores despojadas num jardim... 

Talvez eu volte com um coração enfermo
e tente a morte retirar-me de mim mesmo
mas só eu mesmo posso me tirar de mim...

Afonso  Estebanez