A MAGIA DA EXPRESSÃO LITERÁRIA
MÓDULO 09
*CONSIDERAÇÕES SOBRE O HAIKAI*
“INICIAÇÃO”
Forçoso é admitir que o haikai (haïku ou
haicai) ainda constitui um gênero de poesia oriental não muito conhecido – “não
muito compreendido” – no Brasil, como em quase toda a civilização banhada pela
cultura ocidental. Do ponto de vista da crítica literária de ofício, continuam
perdidos na neblina do mercado editorial dogmático o conhecimento, a
compreensão, a convivência e a difusão dos segredos do menor poema canônico do mundo.
Pedagogicamente, insistem entre nós
os eruditos em que o haikai seja mera
forma poética de origem japonesa,
surgida por volta do século XVI, a valorizar o estigma metalinguístico do fenômeno
da concisão. O haikai seria, portanto, a arte de dizer o máximo com o mínimo. A linguagem num baile de
máscaras onde o poeta não deve aparecer. Cada composição deve ser cativa da
captação de um momento de experiência, de um instante em que o simples
subitamente se revela natureza interior e nos faz olhar novamente o observado,
universalizando cada particularidade da natureza humana.
Em parte,
esse conceito preserva a doutrina literária da menor composição poética
conhecida. Mas o grande mestre haikaista de todos os tempos foi o poeta japonês
Matsuô Bashô (1644-1694), para quem a poesia-síntese não era um simples
matrimônio de sons vocabulares, dedicando-se a fazer do haikai uma prática espiritual,
unindo a poesia aos princípios zen-budistas.
O haikai visto pelo ocidente
desembarcou no Brasil em 1919 com o poeta Afrânio Peixoto , e de lá para cá
viveu momentos diversos: ganhou a rima do estágio terminal do culto parnasiano,
perdeu a rima de cera do simbolismo eclesiástico, ganhou título de identidade
perdida, perdeu a identidade do título, agitou polêmicas nunca resolvidas
acerca de sua forma e dividiu correntes de obscuros adeptos da alternativa
“geração-mimeógrafo” da expoesia de varal estendida ao longo das calçadas.
Uma das
correntes defende o tradicional haikai nipônico. Seguida inicialmente por
imigrantes japoneses, como Teruko Oda, define haikai como um poema de três
versos, escrito em linguagem simples, sem rima, com dezessete sílabas poéticas
(sendo cinco no primeiro verso, sete no segundo e cinco no terceiro), e com uma
referência à natureza expressa por uma palavra (o chamado kigô), que deve
representar obrigatoriamente a estação do ano. Poucos nomes têm-se destacado
nessa corrente: Edson K. Iura, Francisco Handa, Douglas Eden Brotto, Francisco
Pichorim, Paulo Franchetti, Luis Antônio Pimentel, Antônio Seixas, Osman José
de Oliveira Matos, Jorge Fonseca Ramos, Wandi Doratiotto, entre outros como a
notável escritra e poetisa maranhense Benedita Silva de Azevedo.
A
primeira incursão nesse tipo de arte no Brasil, entretanto, foi através de
Guilherme de Almeida, para quem o haikai deveria ter estrutura métrica rígida,
rima e título. Em um esquema proposto por Almeida, a 5ª sílaba do 1º verso rima
com a 5ª sílaba do 3º verso, e o 2º verso possui rima interna (2ª com 7ª
sílaba).
A
terceira corrente incorpora o haikai à tradição brasileira, não valorizando
tanto a métrica nem o kigô. São poetas como Paulo Leminski, Helena
Kolody, Millôr Fernandes, Lyad de Almeida e Alice Ruiz que, além de questionar
a forma do haikai, ampliam suas possibilidades temáticas. Chega-se a ter, hoje,
haikais com temática erótica, como os de Olga Savary, Lyad de Almeida e Luiz
Antônio Pimentel. O autor desta obra é adepto desta última corrente, sem abolir
necessariamente o conteúdo original da carga metalingüística da arte japonesa.
O sarcasmo, a ironia, a irreverência, o protesto, os paradoxos políticos,
religiosos e sociais próprios da resistência literária exposta pela geração
contemporânea, são ingredientes que fazem parte da aculturação do ocidente no
que diz respeito ao menor poema canônico
do mundo.
Reproduzo as palavras mais eruditas de Lyad
de Almeida, inseridas como justificativa do seu mais recente trabalho com a
poesia-síntese: “Haikais e Outros Poemetos” (1988). As adotamos aqui, não
apenas pelo grato oportunismo da mensagem, como também mercê do estímulo
imperativo de colaborar no amanho desse garimpo literário, com uma explicação
que melhor se ajuste ao interesse do leitor e, ao mesmo tempo, satisfaça ao
nosso propósito literário:
“Data de
1972 – diz Lyad de Almeida – o nosso Manifesto,
intitulado “Poesia- Síntese”, no qual, em trecho fundamental, afirmávamos que o
mundo de nossos dias caracteriza-se, irreversivelmente, pela dinâmica do
comportamento humano. O homem, cada vez mais em luta com o tempo, vê,
impotente, as horas passarem numa vertigem incontrolável. A poesia, como
nenhuma outra forma de expressão artística, sofre as conseqüências desse
dinamismo revolucionário, dessa pressa exacerbada. Hoje (o amanhã mais do que
hoje), a poesia há de ser breve, telegráfica, sintética. Porque só a
Poesia-Síntese poderá, no mundo atual caracterizado pelo dinamismo, pela
celeridade, comunicar-se eficientemente.
O poeta,
para transmitir sua mensagem, sua idéia, seu sentimento, deverá economizar
palavras e valorizá-las. De há muito nos convencemos dessa verdade. Daí porque
adotamos, como forma de expressão poética, as tankas e os haikais. Não
as thankas e os haikais do Japão, porque entendíamos, como entendemos, que a
poesia, além de sintética, deve ser aberta ao entendimento mais amplo do povo,
e as tankas e os haikais – estes mais do que aquelas – são de difícil percepção.
Imprescindível, pois, a modernização desses gêneros de poesia exercitados pelos
japoneses.
Sabe-se
que o clássico HAIKAI obedecia, entre
outras, as seguintes regras: não ter título nem rima, não permitir a figuração
do poeta no poema, não ser cacofônico, conter-se em versos de cinco, sete e cinco sílabas,
mencionar a estação do ano – ainda que de forma imprecisa – representada pelo
aspecto da natureza nos seus quatro ciclos. Esta última regra somente é
admissível para um povo eminentemente contemplativo e amante da natureza como o
nipônico o é, circunstância fundamental quase nunca percebida pelos ocidentais,
tal, por exemplo, nestes magistrais versos de Bashô:
Quimono secando
Ao sol, Oh! Aquela manguinha
De criança morta.
A referência à estação do ano e ao drama vivido está presente neste haikai, pois é no outono que os
japoneses, depois de descoser e de lavar os quimonos, põem-nos a secar ao sol.
Por desconhecermos os hábitos dos nipônicos, poderíamos concluir que não havia,
na poesia de Bashô, obediência ao cânone traçado aos haikaistas. Mas a
tendência é universal: os homens preferem simplificar as coisas e, no próprio
Japão conservador, o haikai sofreu
modificações, modificações essas graças às quais tornou-se menos impermeável à
massa popular, surgindo, inclusive, poetas que desprezavam certos cânones
considerados imprescindíveis, como no caso de Iça, que se põe dentro do poema.
Não obstante as transigências feitas pelos japoneses, ainda assim é o haikai, pela sua forma e pelo seu
hermetismo, quase impossível de ser manejado por outro povo que não o nipônico
e difícil de ser entendido até mesmo pelo japonês menos afeito aos segredos da
poesia” – conclui Lyad.
No itinerário dos ensinamentos
difundidos pelos mestres dessa divina cultura, no oriente como no ocidente, não
há mais distância entre a arte da “poesia-síntese” e o ofício da “síntese
poética” do ponto de vista da linguagem
universal das thankas e haikais.
Esta obra simples é, antes de tudo, uma proposta despretensiosa no concerto
universal do tema. Louva-se em palavras bem-aventuradas como as de Benedicto
Ferri de Barros que, prefaciando ensaio clássico de Hidekazu Masuda – “Burajiru
Haikai-Do” – deu nova dimensão a esse tipo raro de literatura. “Porque –
contempla o prefaciante – na finura e singeleza de sua composição, a um tempo
espontânea e precisa, traz a característica marcante do trabalho intelectual de
linhagem japonesa: a qualidade estética. A verdade não é tudo: é essencial que
ela ande de braço dado com a beleza”.
Nesse itinerário, como diz Ferri a
respeito de Masuda (...), caminha-se por ele, passando-se imperceptivelmente da
prosa para a poesia, como acontece em toda a literatura japonesa e como Bashô o
fez em suas andanças pelo Japão. “Neste caminhar, vão os haicais surgindo ao
longo do ensaio como flores à margem da estrada, estrela solitária cintilando
no azul do céu, ou múltiplas constelações pisca-piscando em prata no dossel da
noite...”.
“Bem creio jamais se alcançará – conclui Ferri – reproduzir em português
a força original de uma gema nipônica, nem creio que as gemas brasileiras de
haicai, vertidas, traduzam para o japonês sua rutilância própria. Cada poema
vertido, em qualquer direção, é um poema novo em uma nova língua. Mas também
acho que assim mesmo deva ser. Que de lá para cá e daqui para lá, o
haiku/haicai se apresente como tênue, mas sólida ponte pela qual transita uma
corrente de sensibilidade afim e fraternal”. Da nossa autoria:
“Pétala
cor púrpura
no
linho branco do leito...
O
primeiro amor.
O menino morto.
A mulher tece o
quimono
com fios de
lágrimas...”
Afonso
Estebanez