quinta-feira, 17 de novembro de 2016

CÂNTICO DE AMOR NOTURNO
(Do Saltério de Sarom)
A hora é alta! E a noite é numerosa! 
Morta é a lua no abismo da penedia!
Brame o oceano e freme a ventania 
nos funerais noturnos da esperança...
E nem o amor pode fazer mais nada! 
Deixei que minha vida se exaurisse
e que a escuna da alma se esvaísse 
à bruma na memória da lembrança!

Oh, torrente assombrosa de paixões... 
Não há rosa na vida que não sangre
ou lírio que viceje sobre o mangue 
tinto de sangue ao látego do vento!
Divino amor dos deuses decadentes... 
A aurora é luz na sombra iluminada
de uma opereta infrene e inacabada... 
O amor saiu de cena antes do tempo!

Oh veredas lunadas! Oh candeias 
do último luar que morre em mim
como luz entre as urzes do jardim 
ou o ninho entre sarças encoberto!
Último cântico dos mortos sonhos 
idos na flor ardente de Hiroshima!
Sonhar de amor que dói e desatina 
e esvair-se como o oásis no deserto...

Procurei pelo amor por toda parte... 
Debalde! Nem os cânticos dos rios
nem os porões escuros dos navios 
puderam-me dizer onde encontrar!
No sonolento olhar das aves puras 
na cruz da sepultura de meus pais
ou na honra sem dor dos samurais... 
Não se vê onde possa o amor estar...

Quem sabe se nos idos medievais! 
No princípio dos meios e dos fins...
Nos berçários azuis dos querubins 
onde o amor é prodígio da paixão!
Mas amor sem o amor está banido... 
Espada que não serve ao cavaleiro,
aventuras do barco sem barqueiro 
pelos mares do amor sem a ilusão!

Há ainda os cadáveres das mães 
jazidos na poeira dos escombros...
Há o peso dos corpos e os ombros 
no fúnebre despejo das tragédias!
Ah, cântico de morte! Madalenas! 
Chorai por esperanças prometidas
no jubiloso regresso das partidas, 
o lado menos triste das comédias...

Chorai pelo destino de Desdêmona! 
De Beatriz de Julieta e de Eurídice...
Cantai o amor maior do apocalipse... 
Pelo amor de Jocasta! Oh corifeus!
Pela paixão dos astros e do eclipse... 
Das prostitutas pelo amor proscrito
acolhido pelo amor de Jesus Cristo, 
o Bem Supremo da paixão de Deus!

Deus! Depõe esse cântico de amor 
nas veredas profundas do oceano!
Sustenta esse meu doce desengano 
por esses mares de paixões e além...
Faça-me ânfora de um vinho novo. 
Devolve a profecia ao seu profeta
e esse dom da poesia ao seu poeta 
que tange às portas de Jerusalém!

Quero o amor infinito dos amantes 
além dos fundos falsos das janelas
de onde o cio amoroso das gazelas 
fertilize o deserto além do Hebrom...
O aroma dos vinhedos verdejantes 
os amores do gamo sob as vinhas
guardadas pelo amante das rainhas, 
como as rosas dos vales de Sarom!

Afonso Estebanez

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