sábado, 13 de dezembro de 2008

CONTAGEM REGRESSIVA


CONTAGEM REGRESSIVA

Dez... O eco milenar de um tiro ouviu-se.
Tombou um homem como império que ruísse
e a contagem regressiva principia:
como se naquele instante de enfático silêncio
doesse mais a fome negra de Biafra
que, sem vacas pra adorar, há milênios já doía.
Um tiro se repete e em nós a História se repete cada dia.
O vírus do conflito a espécie perpetua
e em cada cérebro pressente uma guerra gradativa
à medida que a contagem regressiva continua...

Nove... O lavrador aguarda a safra sem convicção.
O poeta e o poema continuam mais herméticos.
Os patéticos sorrisos não traduzem sua origem.
A liberdade ferida pelo vício do consentimento
o que faz é construir paredes.
O amor preso em cadeias do diálogo obscuro.
E tudo o que sabemos fazer é omitir: o silêncio
é o tijolo
que acrescentamos sobre o dorso intransponível desse muro.

Oito... Mas nossos filhos saberão de tudo:
a fome não se oculta toda a vida.
Os seios das mulheres de Biafra
irão cobrar seus dias de abundância.
O lavrador reclamará a sua safra.
O amor propalará sua renúncia
e nossos filhos saberão de tudo
porque cada um de nós é uma denúncia...

Sete... Estamos todos sendo expatriados.
Expatriadas as nossas convicções.
Indesejados os filhos de suas mães.
Nós somos deuses levados à guerra.
Semideuses morrendo de fome.
Estamos todos sendo expatriados
transformados em numerosos vietnames.

Seis... É tempo de jogar o último vintém
dos sonhos idos, dos que ainda vêm
e no resto da vida jogar sua riqueza...
Depois a dor pode cobrar seu pranto
cada sonho cobrar seu desencanto
e a tristeza cobrar sua tristeza.

Cinco... Ainda é tempo para amar.
Improvisemos uma primavera
e proclamemos todos nós iguais:
basta de tombar esses impérios
de homens em conflitos raciais.

Quatro... Enquanto estamos à mesa dos famintos
bradando com os negros seu clamor
virão príncipes vestidos de mendigos
suplicar-nos um pouco desse amor.

Três... E os senhores de nossa liberdade
um dia passarão famintos
mas nós estenderemos nossas mãos...

Dois... E os poderosos virão desatinados
matar a fome com o sobejo dos irmãos.

Um... O amor é a neutralização da bomba.

Zero... ?

Afonso Estebanez
(Prêmio “Troféu Casimiro de Abreu” do I Torneio Nacional da Poesia Falada –1968 – Governo do Estado do Rio de Janeiro – Secretaria de Educação e Cultura – Departamento de Difusão Cultural)

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