segunda-feira, 21 de novembro de 2016

A MAGIA DA EXPRESSÃO LITERÁRIA
OFICINA - MÓDULO 02
POESIA - POEMA - CONCEITOS - UNIVERSALIDADE - “TRANSITIVIDADE DO SER”



Ao longo dos tempos dicionaristas têm registrado o termo vocabular “POESIA” como sendo ‘A arte de escrever em verso’ ou ‘caráter do que desperta o sentimento do belo’, conceitos habitualmente confundidos, pelos mesmos dicionaristas, com o termo ‘inspiração’, este à guisa de recurso extremo da dicionarização do vocábulo ‘poesia’, para dizer daquilo que supostamente se possa adequar a uma ‘sugestão de origem transcendente ou psíquica, ou de qualquer objeto que tem virtude genética sobre o artista para o excitar à produção e lha orientar’. E que “POEMA” é uma ‘Obra em verso’ ou uma ‘Obra em prosa em que há ficção e estilo poético’. (Michaelis, in ‘Moderno Dicionário da Língua Portuguesa’, Melhoramentos, 1998). Para outros confiáveis dicionaristas também, poesia é ‘Caráter do que emociona, toca a sensibilidade’, a ‘Sugerir emoções por meio de uma linguagem’, e poema é ‘Obra em verso ou não, em que há poesia’ (Aurélio, in ‘Minidicionário da Língua Portuguesa’, Nova Fronteira, 1993).

Acreditamos, todavia, que isto não é suficiente. A matéria prima do aprendizado é o ‘fato cultural’, independentemente da profundidade do processo cognitivo de sua natureza. Vemos os termos ‘inspiração’ e ‘ficção’ – empregados pelos dicionaristas para estabelecer diferença técnica entre poesia e poema – como recursos vocabulares pouco adequados ao estudo do tema. Durante séculos, tem sido próprio dos compiladores do ordenamento vocabular da língua portuguesa conferir a alguns termos pesquisados inovadora carga – ainda que sutil – de conotação ‘crítica’, não raro ‘inspirada’ em princípios subjetivos de ‘definitividade’ linguística.

Nesta oportunidade, relevamos a soberania, a magnitude e a universalidade conceitual do tema, para novamente proclamar a liberdade da expressão de pensamento, na tentativa de dar mais uma resposta ao fenômeno milenar da “poesia” x “poema”, confessando-nos face a face com um enigma que, a despeito de todas as ciências humanas, de todos os conhecimentos adquiridos pelo homem e das experiências vividas em todos os tempos pela humanidade, continua enigma! Neste ponto, queremos nos abster de emitir nossos conceitos próprios sobre o assunto, para privilegiar o notável magistério literário do erudito Professor *Pedro Lyra, Doutor em Poética da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a quem rendemos nossas fraternais homenagens.

Leciona o Professor Pedro Lyra (in excertos de ‘Conceito de Poesia’, Ática, São Paulo, 1986, Série Princípios): “1 - Poesia: A transitividade do ser. Poetas e leitores, críticos e historiadores, teóricos e professores têm-se reportado, ao longo da História, à poesia e ao poema, ora como coisas distintas, ora como coisas identificadas. São inúmeras as tentativas de definição, mas nenhuma se apresentou com a universalidade e o rigor necessários à sua afirmação estética, filosófica ou científica. Que são, em realidade, poesia e poema?”

E ressalta nosso mestre em poética: “A princípio, podemos afirmar - baseados na mais visível constatação empírica - que a definição de poema é muito menos controvertida do que a de poesia, e este fato já nos remete a uma dedução inicial óbvia: identificados pela consciência ingênua, poesia e poema são, e sem mais dúvida, coisas diferentes. (...). O poema é, de modo mais ou menos consensual, caracterizado como um texto escrito (primordialmente, mas não exclusivamente) em verso. A poesia, por sua vez, é situada de modo problemático em dois grandes grupos conceituais: ora como uma pura e complexa substância imaterial, anterior ao poeta e independente do poema e da linguagem, e que apenas se concretiza em palavras como conteúdo do poema, mediante a atividade humana; ora como a condição dessa indefinida e absorvente atividade humana, o estado em que o indivíduo se coloca na tentativa de captação, apreensão e resgate dessa substância no espaço abstrato das palavras. Se o poema é um objeto empírico e se a poesia é uma substância imaterial, é que o primeiro tem uma existência concreta e a segunda não. Ou seja: o poema, depois de criado, existe ‘per se’, em si mesmo, ao alcance de qualquer leitor, mas a poesia só existe em outro ser: primeiramente, naqueles onde ela se encrava e se manifesta de modo originário, oferecendo-se à percepção objetiva de qualquer indivíduo; secundariamente, no espírito do indivíduo que a capta desses seres e tenta (ou não) objetivá-la num poema; terciariamente, no próprio poema resultante desse trabalho objetivador do indivíduo-poeta”.

“Este – insiste Pedro Lyra – é o problema fundamental: se a poesia está no mundo originariamente, antes de estar no poeta ou no poema – e isso pode ser comprovado pela simples constatação popular de que determinados objetos/situações do mundo são ‘poéticos’ – ela tem a sua existência literária decidida desse trânsito do abstrato ao concreto, do mundo para poema, através do poeta, no processo que a conduz do estado de potência ao de objeto. Então, podemos deduzir que a existência primordial da poesia se vincula à daqueles seres que exercem algum influxo sobre o sujeito que entra em contato com eles e o provocam para uma atitude estética de resposta, consumando o trânsito – da percepção à objetivação – mediante uma forma qualquer de linguagem. (...)”.

Neste passo, é de bom alvitre que fiquemos atentos à diferença formal que os estudiosos fazem entre ‘poema’ e ‘poesia’, lembrando que, apesar de serem tratados por muitos como sinônimos, o uso dos dois termos, entre os que vivenciam a experiência em poética, representa uma real ‘transitividade do ser’ humano entre sua espécie primitiva e sua espécie transcendental (do imaterial/abstrato/subjetivo ao material/concreto/objetivo). A propósito, analisa o não menos notável Professor *Dimas Macedo, docente da Faculdade de Direito de Universidade Federal do Ceará:

“Da transitividade do ser aos processos de reificação ou de transformação da consciência reina, de forma soberana, a maior de todas as linguagens criativas. O ato de criação ou de transfiguração da poesia é tão sutil e magnético quanto a manifestação de todos os mistérios e mitos insondáveis.

Acho que podemos falar de uma mística da poesia, assim como podemos supor a inexistência da matéria a partir das suas formas plurais de energia. A espada e a lírica com que se arma o empreendimento do poema tanto podem construir a geopolítica de qualquer civilização planetária quanto transformar os processos sociais e econômicos de qualquer modo de produção em andamento.

Aquele que serve de parâmetro ao atual estágio de regressão da cultura, até o limite da barbárie e da violência plural e indiscriminada, isto é, o modelo de produção do capitalismo financeiro, na sua fase superior de concentração de riquezas e de exclusão social, está a questionar os potenciais de indignação e de revolta que os poetas carregam em sua consciência.
A alienação das formas de construção do poema e a alienação dos poetas malabaristas, nefelibatas e provincianos não mais respondem às exigências da linguagem que a nova desordem cósmica e mundializada erigiu como suporte da sua contradição e da sua negação transformadora.

Creio que não é preciso ser marxista, socialista ou adepto dos novos princípios políticos da insubordinação ou da desobediência para constatar que o holocausto do capitalismo financeiro – unilateral, concentrador e excludente – é tão perverso e assassino quanto as concepções totalitárias que destruíram muitas esperanças durante o século precedente”.

*Pedro Lyra é professor de Poética na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professor-visitante em Universidades de Portugal, Itália, França e Alemanha. Poeta, antologista, crítico literário e ensaísta, Lyra nasceu em Fortaleza, em 1945. Na atualidade, é referência de grande valor na literatura brasileira pós-modernista. É membro titular da Academia Brasileira de Poesia.

*Dimas Macedo é cearense de Lavras da Mangabeira, onde nasceu em 1956. Poeta, crítico literário e jurista brasileiro, é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, membro da Academia Cearense de Letras e integra o Conselho Editorial de vários jornais e revistas culturais do país.
Afonso Estebanez

domingo, 20 de novembro de 2016

RAPSÓDIA DE AMOR CIGANO
(Quinto fragmento)



Ah, permita-me querida
viver sonhar se possível
enlouquecer e me viver
de alma nua consumida...

E que me é dado por lei 
morrer-me de desmorrer 
vivendo-me de desviver 
pelo fim sem despedida...

Ô, conceda-me querida 
morrer-me sem padecer
ou então me adormecer
docemente em tua vida...

Afonso Estebanez 
RAPSÓDIA DE AMOR CIGANO
(Quarto fragmento)



Da mais alta colina dos vinhedos em floração
preciso proclamar ruidosamente a todo mundo
que é possível amar sem os arbítrios da razão...

A despeito de tudo, essa paixão foi concebida!
E ocultar mística evidência em sonho revelada
seria inconcebível tentativa contra minha vida...

No cume do meu coração tomado e pertencido
tua bandeira tremula no mastro de meus afetos...
E grito! para que todos saibam de mim próprio

o quanto o padecer por ti me condenou à vida...
Sortilégio de amor, querida! o outono nascerá
dessa esperança de jamais viver de despedida!

Afonso Estebanez 
RAPSÓDIA DE AMOR CIGANO
(Terceiro fragmento)



Sou pastor de teus sonhos pelo vale de minha
insônia... Nos murmúrios dos rios te conduzo
enquanto é noite ainda... e festejamos a vinda

do amor na aurora que ao amor foi prometida...
Ciranda de quimeras! Teu coração de menina
em meus abraços é o prenúncio de outra vida...

Tu pedirás que eu volte!... E voltarei, querida!
E trôpego já tarde em meus trêmulos sentidos
despertados nos lençóis febris de minha carne

– esse repasto de delírios em amálgama retida...
Ô, quantas horas e dias de exílio se arrastaram
no relógio do tempo que levou a minha vida!...

Afonso Estebanez 
RAPSÓDIA DE AMOR CIGANO
(Segundo fragmento)



Querida! eu devo anunciar desatinadamente
a essas vítimas da última tragédia da paixão
– órfãos de afeto e decaídos da esperança – 

que o dia por auroras e crepúsculos transita...
Que inerte padecer-me ao sonho derradeiro
seria o derradeiro entardecer de minha vida...

Ah, perdidamente o devo anunciar, querida!
que ainda há esse remoto amor desesperado
resolvido no doce padecer de reencontrar-te

como a flauta encontrada na canção perdida...
Então eu canto e desespero porque a espera
vem do compadecido amor que me convida!

Afonso Estebanez 
RAPSÓDIA DE AMOR CIGANO
(Primeiro fragmento)



Eu devo anunciar desesperadamente ao vento
aos semideuses arcanjos duendes e querubins
que um dia te encontrarei na virada do tempo..

Que nenhuma paixão desatinada é descabida
e relegar esse amor à memória dos náufragos
seria como a última tragédia em minha vida...

Te darei flores do outono que tomei do tempo
sonhos antigos retomados da esperança finda
entre sombras noturnas de lembranças tardas..

No coração perdido entre a memória perdida
tentei lembrar-me dos fragmentos da história...
Debalde! Desse amor, só o legado da partida!

Afonso Estebanez 
PRIMEIRA ROSA DO ORIENTE



Há milênios construo entre ternuras
uma estrada de rosas que inauguras
em cada amanhecer de minha vida...

Assim, então, jamais sequei deserto
eis do teu sonho nunca me desperto
a não te ver ausente e adormecida...

Do Oriente ao Ocidente teu perfume
foi sempre a via etérea afeita e afim:
ao teu destino de ser meu queixume
em meus destinos de ser teu jardim.

Jardim da aurora que me fez a lume
lume da rosa de teu ventre em mim:
Rosa do Oriente que o amor resume
no amor das rosas com amor assim!

Afonso Estebanez
POR UM GRANDE AMOR



Nascer é como ouvir passar um rio
na concha do recôncavo da aurora
que acorda no crepúsculo sombrio
do tédio de passar sem ir embora!

Viver é como estar em pleno estio
de quando a primavera comemora 
nos arco-íris do sonho o desfastio 
de reflorir do estio de quem chora!

Sonhar é como reinventar o acaso
da causa dos amores sem destino
nas histórias de reinvenção da flor.

Morrer!... É como recontar o caso
de reinventar o sonho clandestino
de ter vivido por um grande amor!

Afonso Estebanez
HAIKAIS


DEUS GUARDA MINHA CANÇÃO



Eu existo porque canto.
Nada sei, senão cantar...
Encanto por desencanto
ou canto para encantar.

Tenho a alma das violas
nas danças de desfastio
e beijos de castanholas
nas horas de meu estio... 

É acalanto quando calo
como flauta sussurrada
no canto mudo do galo
que perdeu a alvorada...

É mudez do vasto espanto
de ver tanto amanhecer...
Não é mágoa nem é pranto
mas o encanto de nascer. 

Eu trago memórias fartas
das almas dos bandolins
das guitarras e das harpas
dos corais dos querubins...

Não é magia nem fado
o louvor que me conduz
pelas veredas do prado
dos rebanhos de Jesus...

Afonso Estebanez 
TUDO MENTIRA



Eu não fico de mal com minhas rosas
pois que é tudo mentira dos espinhos
que há na intriga das flores invejosas
das urtigas que beiram 
meus carinhos.

É meu fado entre as flores amorosas
cuidar que os desencantos do jardim
reencantem-se das flores generosas
do canteiro de rosas 
que há em mim.

Tudo mentira, as urzes são formosas
se como as rosas são compadecidas
da flor entre as escarpas pedregosas
do deserto de amor 
de nossas vidas.

Afonso Estebanez
(Dedicado à minha querida e doce irmã
Vera Lúcia Stael Paris – Ver@ P@ris) 
SER PERENE
(Poema Védico)



A luz vem do olhar de uma fera acuada
que aguça os sentidos da carne que assanha...
É como galgar dentro d’alma enjaulada
a encosta escarpada de rude montanha.

Os lobos vorazes dos vãos pensamentos
são rasgos de raios num céu sem lampejos...
Mil potros selvagens no dorso dos ventos
tangidos por cães de sangrentos desejos.

Os cumes dos montes são gumes da mente
que traçam no céu azimutes perdidos...
Faróis que se acendem nos vãos da torrente
que invade a planície sem luz dos sentidos.

Voeja entre nuvens de braços abertos
conquista o infinito, degrau por degrau...
Transforma as areias de imensos desertos
num lago escorrendo entre sons de cristal.

É como um cometa luzente no espaço
que a luz abrangente de um raio devora...
O ser se dilui no infinito regaço
e Deus se revela de súbita aurora!

Afonso Estebanez