quinta-feira, 20 de novembro de 2008

ALEGRETO


ALEGRETO

não é festa
ou romaria
ou sombra
virando luz
na fogueira
do clarão...

é a noite
chegando
cedo para
o baile de
verão...

A. Estebanez

O ASTRONAUTA


O ASTRONAUTA

10...9...8...7...6...5...4...3...2...1...0...
Sobre o veludo negro do infinito
em argilácea pedra de brilhante
a Terra dos Homens era azul...
Eu quis comunicar-me com o mundo
por que a grande resposta estava nele
(meu corpo poluía o firmamento
e quebrava a harmonia do Cosmo)
por que não tinha sentido conquistar
além-de-nós a flor que prova a vida.

Mas os Homens só escutam o que querem
e a vasta câmara cósmica do vácuo
repelia meu corpo estranho e sestro
de impuras ambições desintegradas.
E o estado-puro do espaço-nada
coibia-me o plano da conquista,
sendo o infinito é a total ausência
da noção que nos faz deuses,
sendo escravos.

Eu não devia nunca ter partido
com grave densidade de memória
sobre guerras miséria e desamor.
Eu devia fingir não-ser humano
para enganar a Deus que o amor habita,
mesmo na argila que se via ao longe
no conjunto harmônico do Universo:
origem da vida azul envolta
em nebulosa branca de paz
(ou num crepúsculo de sangue).

Queria dar a grande resposta,
mas sempre há torres mudando a trajetória.
A guerra é campo de gravidade
do planeta Morte
onde se cumpre em noites e sombras
o claro sol das manhãs
e ventres geram centauros
e mercenários defecam ouro
no nome monstro de Deus.

Mas era impossível.
(No espaço a Terra girava
a fome numa redoma
e o coração se esquecia
de que era festa em meus olhos).
O contato estava interrompido.

E enfim cheguei à vida e ao pericíntio.
Pisei cascalhos penetrei cavernas
transpus em vão agudas cordilheiras
e tudo eram silêncio amargo e nada
como um sapato vazio na janela do Natal.
Enclausurada nessa ausência cósmica
das indevidas invasões armadas
fui cidadela super-habitada
por invisíveis monstros abissais...

Estava aí que a Liberdade
é poder escutar uma canção...

E o mundo mudo-de-amor já falava
em “flor espacial” que tudo prova (!).
Por isso caminhei sobre as feridas
de um campo estéril de só flores mortas.
Vi purulentas chagas de crateras
segregando poeira e me prostrei
sobre as cinzas dos “Ai de vós Jerusaléns!”

Mas eu queria a flor que alucinava
esses sarcófagos humanos,
a rosa filha do fogo e da água
a prova científica do amor
resposta para a fome dos irmãos.

Não era flor o que eu queria
– era o Universo.
E essa rosa só existia
na argila azul do infinito.

Reverti os motores e a vida
no corredor de entrada dos dias
e assim que amerissei no azul regaço
da prostituta que chamam de Esperança,
a humanidade toda estava dentro dela
e seu olhar morria como a luz desiste
de brilhar no céu da guerra contra a flor
que além da Terra não existe.

Em suma, eu vos devolvo o mapa simples
do amor que se debruça em sua espera.
Dou-vos ferida a carne para o corte
e a fronte ao golpe da sabedoria.
Necessária a inocência dos cordeiros
pelos caminhos da resposta exata.
Somente com os pés sobre o seu chão
e quando a argila não cheirar à guerra
e a flor voltar a ser apenas flor
é que seremos DEUSES sobre a Terra.

Afonso Estebanez
(Prêmio “Troféu Casimiro de Abreu” do II Torneio Nacional da Poesia Falada –1969 – Governo do Estado do Rio de Janeiro – Secretaria de Educação e Cultura – Departamento de Difusão Cultural)

A ALMA SONHA SOZINHA


A ALMA SONHA SOZINHA

Anda a minh’alma sonhando
tão sozinha e acompanhada,
que às vezes vivo pensando
que a alma sonha acordada.

Mas sonhar é um fio d’água
que sozinho entrega ao mar
muitos afluentes de mágoa
que se escoam sem passar.

Sejam simples como a flor
que sonha sonhos calados
dos que perecem do amor
dos sonhos não realizados.

Somos a curva da estrada
dos sonhos que vão além:
sonhar sozinha sem nada
é tudo o que a alma tem...

Afonso Estebanez

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

CANTO DE ABRIÇÃO (Folclórico de Folia Reis)


CANTO DE ABRIÇÃO
(Folclórico de Folia Reis)

Tempo haverá em que
o canto ficará
completamente mudo.

A lágrima será como semente
da palavra salgada
que os olhos plantarão
entre os lábios...

Meu senhor dono da casa
escuta prest’atenção
vem abrir as vossas portas
pra esse nobre folião...

Devastarão casa por casa
cada palmo de chão será salgado
arrancarão todas as portas
e janelas dos sentidos
como o corpo num ritual
de sucessivos fluxos menstruais.

Sempre a história se repete
como a fábula inventada
por um rei que tem de tudo
e um povo que não tem nada...

Mas eu atirarei minha canção
no telhado da minha casa
e a chuva arrastará meus versos
pelas calhas esgotos e canais
e os desaguará em mar aberto
como barcos que despertam
na restinga da manhã...

As noites se perderão
para sempre de seus dias
mãos cheias virar-se-ão
sobre o chão das mãos vazias.

Transmitirei meu canto
boca a boca
como flor que germina
pelo olhar.

Espalharei meus barcos no vento
e minhas asas no mar...

No banquete solidário
da miséria consentida
só não morre quem não come
porque a fome é dividida...

Cada grito renascerá
no som do apito de fábrica
cada pranto reprimido
será chuva derramada.

Meu pai se chama João Caco
minha mãe Caca Maria
juntando Caco com Caca
sou filho da cacaria...

De verde as folhas lavadas
nos arbustos das colinas
aos pingos encharcarão
as ramagens de resina...


A sobra que cai de cima
não se bebe nem se come...
Como água não mata a sede
como pão não mata a fome...

Nossa voz terá o calor da luz
no interior de uma choupana
na floresta.
A chuva correrá por claros vales
como fios de lã levados pelo vento.
Os pássaros imigrarão de seus mistérios
e as flores da manhã se regozijarão
como sinos diáfanos de luz
que não se ouvem senão com o coração...

Não quero toda a farinha
somente um pouco do pão
com que vossa mãe Maria
esposou meu pai João...

Os pés dos pequeninos pisarão lá fora
não como as botas que hoje pisam
a relva da esperança
fecundada pelo orvalho...
Eles terão o seu caminho certo
como as reses os sulcos dos campos.

Quem sobreviver verá
em passos desencontrados
o diabo passar no rastro
sob as cinzas dos reisados...

Todos entoaremos
uma canção que não se ouvia mais.
Os olhos verão coisas inacreditáveis...

E os homens se tornarão
mais unidos por amor
como irmãos num só rebanho
pela voz de um só Pastor!

Nosso ódio não tem mais ira.
Andamos de pés trocados
festejando os desmomentos
dos remates acabados...

Meu senhor dono da casa
escuta prest’atenção...
Vem abrir vossa loucura
pro meu canto sem razão.

A. Estebanez

terça-feira, 18 de novembro de 2008

ZUMGROPOEM


ZUMGROPOEM

Aqueles dias foram dos abdias
foram os dies irae dos zumbis.
Eu vi... os gnomos elementais
e ouvi a fala suaili... Eu ouvi!
Eu revi os cabelos prateados
a lua branca sobre os altares
dos lombos negros açoitados
e vi a escuridão de Palmares.

Um quilombo de denúncias...
Os atanásios das montanhas
encachoeiradas de além dali
o desafio do dente-de-sabre
do Kilimandjaro! Ah, gente!
Eu vi! a face do tigre nobre
e um príncipe das tanzânias
a Amazônia da renascença
Nagôiorubrasileiro... Eu vi!...

Eu vi Deus saudar o Afoxé
sagrados badauês aiyêsd
Deus dizia “ – Meu Oxalá!”.
Deus dizia “ – Salve!, Axê!”
O bem maior é a liberdade
– essa é a única ideologia
faz o homem ser solidário
diferente Deus não faria!...

Afonso Estebanez

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

LIBERDADE


LIBERDADE


Será liberdade
aquele vôo de águia
de uma simples
folha seca?

Que poder tenho eu
sobre o dom da liberdade
de uma simples
borboleta?

Liberdade é assim:
sai o perfume da flor
mas a flor não sai
de mim...


Afonso Estebanez

EMPRESTA-ME A TUA ALMA


EMPRESTA-ME A TUA ALMA

Já sei por onde escoam as águas da fonte
desse sorriso de cristal que me entorpece
de sonhos o rebanho de minhas emoções.

Ecoa-me a canção destas amenas águas
que te escorrem das pedras derramadas
na ânfora do corpo em cálice de outono.

E os teus sorrisos são libélulas de beijos
tangidas pelas flautas doces das ribeiras
do impulsivo destino de lavar o coração.

Então me empresta a alma de alvorada
para tirar de ti as pedras dos caminhos
e apascentar as águas do meu ribeirão.

Benditos sejam os clarins da primavera
benditos sejam os que viverão de rosas
porque de espinhos eles não perecerão.

Afonso Estebanez
(Poema dedicado à minha mais recente
amiga: Fátima Sizilio)

sábado, 15 de novembro de 2008

SONHO COSTUMEIRO


SONHO COSTUMEIRO

Eu sonho-te nas ramas das videiras
como frutos dos vinhos de venturas
em rebentos de graças costumeiras
que me lavam de brisas e ternuras.

E vejo como em sonhos de pastora
tanges de mim sentidos já remidos
e me levas em sombras protetoras
à ravina de amor dos teus abrigos.

E tenho-te nas heras dos penedos
meu pássaro cantor que a ti visita
nos jardins de secretos arvoredos
onde teu sonho de mulher habita.

E fico em ti como o destino antigo
tocado para mais além da história
onde soubeste que sonhar comigo
seria o amor deixado na memória.


Afonso Estebanez

CORPO DE DELITO (Inventário & Conclusão)


CORPO DE DELITO
(Inventário & Conclusão)

Tudo o que me cumpre registrar agora
é o cadáver de uma doméstica despida
concluindo o relato de corpo de delito
de uma mulher aparentemente suicida...

Uma vela acesa no fundo de um prato
raso e um punhado de rosas vermelhas
num vaso e um cigarro barato apagado
no cinzeiro junto a um copo de vinho
sobre a mesa. Uma foto de um menino
louro ausente e uma traça na bainha
de um vestido. Essa pobreza presente
e um bilhete escondido entre as flores...
Mais um caso de amor mal resolvido.
Suicídio? O veneno na pia do banheiro
uma cômoda, uma moringa, um pente
o espelho partido, um velho chaveiro.
Um colchão, um lenço, uma foto 3x4
e um beijo de batom no travesseiro...

E, assim, o instante esperado
do inesperado acontecimento
o mistério profundo no fundo
da lama
da chama
da cama...
E seu maior milagre do mundo:
a esperança da vida inteira
desesperada num segundo...

A. Estebanez

MARAMOR ABERTO...


MARAMOR ABERTO...

Muito perto de tua vida
em mar aberto perdida
a minha vida é sozinha

ai de minhas caravelas
eu pareço a vida delas
vivida dentro da minha

e essas velas arriadas
suas almas ancoradas
nessa agonia marinha

amor e cravo e canela
tua brisa e uma janela
reaberta para a minha

oh quando dia já morto
ancorado no teu corpo
vôo leve de andorinha

vou vivendo revivendo
e minha vida trazendo
a tua dentro da minha...

A. Estebanez

A FOTO NA PAREDE


A FOTO NA PAREDE

Meu retrato na parede
só traz uma novidade:
o fundo tinto de verde
ficou tinto de saudade.

O olhar pálido de sede
no poço da eternidade
é a luz filtrada na rede
da grade da liberdade.

Uma ruga me comove
de ter restado na vida
do nada que me ficou.

E só o sonho se move
na retina amanhecida
desta foto que restou.

A. Estebanez

ALGUMA ANGÚSTIA


ALGUMA ANGÚSTIA

Não suporto esse perfume
com lembrança de partida
e não suporto o queixume
desta angústia consentida.

Não suporto esses jamais
dos meus dias de finados
da memória de meus pais
nos jardins abandonados.

Nem suporto esse destino
dos meus mares afogados
num naufrágio vespertino
de sonhos não navegados.

Não suporto mais saudade
não suporto o nunca mais
nem suporto a eternidade
dos meus navios sem cais...

A. Estebanez